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  • Foto do escritorSusana Cruz

Carnaval Genuíno XVII - Visita à Quinta

Capítulo 17

MATILDE



O Sr. Oliveira entra e cumprimenta-nos interrompendo os meus pensamentos. Leva-nos até ao Laboratório que fica uns metros abaixo da casa principal. Estão três homens a trabalhar, mas só um deles tem bata, os outros são os filhos do Sr. Oliveira, tão semelhantes entre eles que parecem gémeos. Fortes, de média estatura e muito morenos. E começa nova conversa entre eles e o Miguel. Desta vez eu já não sou a única a não conseguir entrar no tema em discussão. O nível de conversa já subiu a um nível tão técnico que até o Sr. Oliveira também se sente à parte até mesmo aborrecido com a conversa que os rapazes estão a ter. Parece que o Sr. Oliveira não está habituado a não ser o centro das atenções.

Trocam contatos, despedem-se e vamos, os três, em direção do lagar. O Sr. Oliveira passa então a ter o protagonismo, novamente. Entre conversas foi-se falando sobre como e quando se fazem as colheitas, a pisa, os limites dos terrenos e a história da quinta do Sr. Oliveira.

Os lagares estão vazios e os salões desertos, a voz do Sr. Oliveira ecoa nos pipos de madeira.

Carvalho francês. - Diz ele. - Ainda tentamos o nacional mas o meu filho mais velho diz que não compensam, ele explica isso melhor que eu, eu sou só um homem do campo.

É a primeira vez que estou numa cave de vinhos, o cheiro a vinho é muito forte, quase enjoativo, o ambiente é húmido e escuro, andar aqui sozinha… Nem pensar, o lugar chega a ser assustador.

Chegamos a uma mesa e o Sr. Oliveira coloca os três copos lado a lado. Pegando num de cada vez coloca um pouco de vinho a partir da cuba de madeira grande ao nosso lado.

- Esta cuba é de touriga nacional e touriga franca, com dois anos de casco. - Diz ele orgulhoso - Os meus filhos ainda não decidiram se se deve juntar alguma outra uva ou se fica tal como está, eles não estão satisfeitos com os taninos. Ora prove. - Entrega um copo ao Miguel e outro a mim. Claro que espero que o Miguel prove primeiro, eu não tenho a mesma facilidade de identificação de aromas e sabores como ele. Imito-o, mexendo o copo, reparo que fica uma marca rosada nas paredes do copo como gotas que vão descendo.

- Exato, Matilde, essas gotas chamam-se de lágrimas, são indicadores do nível de açúcar. - É espantoso, nunca tinha imaginado que se poderia ter uma noção do nível de açúcar só pelas gotas que escorrem.

- A partir da cor que o vinho apresenta também podemos tentar perceber o tipo de uva usado e, claro, o tipo e tempo de envelhecimento. - Nah, como assim?! Para mim os tintos parecem todos iguais.

- Assim, ainda sem provar, só pelo cheiro, textura e cor apostava em emparelhar com assados. - Continua o seu discurso como se tivesse a fazer um programa de televisão sobre vinhos. - Agora provando, acho que ficaria melhor com “agneau”. - Diz em francês. - Como se chama por cá? Ovelha? -Essa eu sei!

- Deves querer dizer a Borrego! - Ele abana a cabeça e dá-me um sorriso.

É a minha vez de provar, enquanto isso penso no sabor do Borrego, ligeiramente adocicado e provei o vinho, sim, ligava muito bem, este tinto é suave e emparelham muito bem. Digo como se me tivesse de repente tornado numa especialista.

- Já compreendo o que quer dizer com taninos, realmente é preciso trabalhá-los um pouco mais. - Diz o Miguel para o Sr. Oliveira.

- E já agora. – Diz o Sr. Oliveira enquanto pega nos 3 copos e nos vira costas em direção a uma barrica a uns metros de nós. – Esperem aqui que já venho.

Chega à nossa beira com os três copos com vinho novamente.

- Sem eu lhe dizer nada sobre este, diga-me rapaz, o que acha dele? – Distribui os copos e cheira o dele sem provar.

O Miguel fica em silêncio. Cheira, agita e cheira novamente. Já começa a ser um ritual tão regrado que eu própria posso imitar sem medos. O cheiro já é forte antes mesmo de o mexer.

O Miguel pega no meu copo do primeiro vinho e coloca-os lado a lado à luz. Desta vez o vinho é baço, não tem a transparência do outro. E este segundo à mais acastanhado que o primeiro.

- Então o que é que quer que lhe diga?

- Oh, rapaz, não tenha medo de dizer o que pensa.

- Isto não é um teste para ver do lado de quem é que eu estou, é?

O Sr. Oliveira ri-se e continua a insistir, até que, finalmente o Miguel fala.

- Denso … cor acastanhada clara, quase âmbar … cheiro adocicado, baunilha torrada, talvez…

- Isso é bom ou é mau? – Começa o Sr. Oliveira a ficar apreensivo.

- Ainda não sei, mas para já é diferente. – Chega à altura de provar. A primeira deita fora. – Mel, nozes ou avelãs… - A segunda engole - Irra! Qual é o teor alcoólico disto?

- 20! – o Sr. Oliveira ri-se alto.

- Eu vou a conduzir.

- Isso passa, jovem. É o meu vinho do Porto. – E ele prova o seu. – Erro meu, devia-se servir fresco. Sentia-se menos o álcool.

Eu cheiro o vinho, passo nos lábios, mas nem provo. Se o Miguel ficou atrapalhado com aquela prova, então eu… não, nem vou provar.

- Tem vinha em região demarcada? – Começa a brincar com o copo enquanto fala.

- Não, foram uns barris que um amigo meu do douro quis se despachar e eu comprei, foram uma pechincha, mas os meus filhos dizem que é preferível vender do que ficar aqui para uso da família.

- Eu sabia, quer ver qual é a minha opinião nesse assunto. – O Sr. Oliveira abana a cabeça e o Miguel prossegue. – Acho que se o Sr. Oliveira gosta deste vinho deve, a meu ver, engarrafar e utilizar para seu usufruto. Vale mais ter ao lado uma garrafa que goste do que a vender e sentir-se desgostoso porque perde a oportunidade de partilhar com quem mais gosta.

- Mas se me pergunta se o vinho é bom, ou assim, não é a mim que o deve perguntar. Não sou especialista em vinhos do Porto. Podemos dizer que esse é um micro - mundo muito específico dos vinhos.

O Sr. Oliveira levantou os ombros em concordância com o Miguel, pousam os copos e o Sr. Oliveira encaminha-nos até à vinha. Enquanto caminhamos, o Sr. Oliveira continua a falar e fala muito, aquele homem.

Chegamos ao Miradouro. Aí ele faz uma pausa no discurso e fico a escutar o silêncio. Deste lugar temos uma panorâmica para toda a propriedade, e até o Sr. Oliveira admira a vista daqui. Imagino as décadas de trabalho nas mãos deste homem, é uma vida de trabalho, “suor da terra”. Dou por mim a admirar a terra onde vivo e os homens que nela trabalham. Até a mim me sobe o orgulho e respiro bem fundo para absorver o mais possível do ar desta bela terra.

- Vinhas Velhas. - O Miguel interrompe os nossos pensamentos. - Algures nas suas explicações falou em vinhas velhas, de quão velhas estamos a falar? - O Sr. Oliveira fica algum tempo imóvel e aparentemente confuso, coçando a barba nervosamente. – Oh, rapaz, ninguém sabe exatamente. - Gagueja e mostra-se um pouco incomodado com a questão.

- Em França aprendemos que a partir dos 40 anos já se pode chamar vinhas velhas. Tem alguma área com vinhas dessa idade? - O Sr. Oliveira levanta a cabeça e arregala os olhos.

- Ah, isso, claro, Sr. Matos, aquela zona. - Aponta para uma zona mais próxima da casa onde nos recebeu, e desenha com a mão uma linha invisível envolvendo a área. - É seguramente onde temos as vinhas de mais de 50 anos de idade, algumas devem até ter 70 ou 80. Mas não me leve a mal eu não saber exatamente os tipos que lá existem porque são muitos diferentes. Até para os meus filhos aquela área é um puzzle. - Não posso acreditar, vinhas com mais de 50 anos de idade, como pode isso ser possível? Será que ainda dão uvas? E o vinho daí será bom?

- Matilde, as vinhas velhas não são boas por serem velhas. - Será que a minha careta foi assim tão evidente? - Mas aguentaram até velhas porque dão bom vinho, há histórias de algumas que duram até aos 300 anos mantendo a produção efetiva. Pessoalmente, nunca vi nenhuma com mais de 80 anos. É das primeiras lições que temos no mundo dos vinhos. - Vira-se então para o Sr. Oliveira e continua. - E as vinhas certas, nos solos adequados, em anos climáticos apropriados criam um verdadeiro tesouro. Sr. Oliveira, tem algum desses exemplos? - O Sr. Oliveira ainda pensou um pouco.

- Até tenho vários, mas para venda só tenho dois. Estão os dois na cooperativa. Eu não sou o único a produzir. – Completa. - Há mais produtores que apostaram em “vinhas velhas”. - O Miguel abana a cabeça.

- Bom, pode ser que ajude a inverter a tendência dos preços baixos dos vinhos portugueses. - Finaliza a conversa.

Seguimos até à casa por outro caminho. Já é hora do almoço e assim passou a manhã tão rápida. O Sr. Oliveira indica-nos onde se situa a cantina e despede-se de nós. Caminhando pelo percurso de terra e gravilha na direção da cantina, escorrego num pouco de gravilha e o Miguel dá-me a mão para me ajudar. O meu coração volta a andar mil à hora. É melhor meter conversa para distrair os meus pensamentos.

- O que achaste da visita desta manhã? - Pergunto.

- Muito completa, dá-me muitas ideias sobre os mercados a que devo direcionar. E tu? - Reviro os olhos propositadamente.

- Eu pensava que sabia alguma coisa de vinhos, fiquei a perceber que não sei mesmo nada. Tanta coisa que se falou que eu nunca tinha sequer ouvido na vida. A forma de provar, a forma de produção, cuidados a ter com o vinho, as adegas. Tenho um vendaval de informação na minha cabeça! - O Miguel ri-se de mim.

Nunca tinha imaginado que o mundo dos vinhos era assim tão complexo, quando fui trabalhar para a cooperativa o vinho era para mim todo igual, vá uns eram brancos, outros tintos e outros rosés. É uma vergonha agora pensar nisso, mas, eu nem sabia a diferença entre provar e beber. Em um só dia, uma manhã na verdade, a minha forma de ver o vinho virou do avesso e nunca mais vou olhá-lo da mesma forma. Agora compreendo quando o chamam de bebida dos Deuses.

- Aguardas por mim enquanto eu vou à casinha de banho? - O Miguel acena e fica à minha espera próximo à porta.

O Miguel está de poucas palavras hoje, vá lá que ainda vai falando comigo sobre os vinhos. Honestamente, já fico satisfeita por ele não deixar de ser carinhoso. Começou o dia chateado, mas acho que agora as coisas entre nós estão melhores.

Chegados à cantina, vejo que há poucos lugares disponíveis, pegamos em tabuleiros e vamos escolhendo o que queremos almoçar. Escolho a jardineira, os legumes parecem ter bom aspeto e escolho um lugar onde senta e a meu lado um lugar livre para o Miguel. Continuamos a falar, o Miguel falava de alguns nomes de possíveis clientes internacionais. Levanto-me para pegar uma sobremesa para mim e outra para o Miguel. Eu fico com a maçã e o Miguel prefere o pastel de nata. Os rapazes sempre tiveram um metabolismo invejável, podem comer tudo sem alargar para lado nenhum. Depois de fechar o frigorífico viro-me para regressar à mesa e encontro a fulaninha da manhã a entregar um papel ao Miguel. Ele aceitou o papel e colocou-o no bolso. Ela despede-se dele com um beijo na cara. Mas que lata! À frente de todos da quinta.

Voltei a ficar acelerada, os olhos até lacrimejavam. Mas vou aguentar, não vou dar parte fraca aqui à frente de toda a gente, se a bruxa quer guerra, vai ter. Que é que eu estou a dizer a mim mesma? Porra, não há-de ser nada, estou outra vez a fazer uma tempestade onde não existe. Mas como não existe!? Ela deu-lhe um beijo! Acalma-te Matilde, não te passes, vai calmamente até à mesa, em silêncio. Ele sabe que eu vi a fulaninha aos beijos, vê-se na cara dele, mas não fala.

Ao terminar o almoço o Miguel oferece-se para ajudar com os tabuleiros, mas eu não deixo, quero colocar o tabuleiro no seu devido lugar sem os favores dele. Tão depressa o faço como me arrependo, cá está o meu orgulho a tomar a melhor, qual é o problema de ele me levar o tabuleiro, até era uma forma de fazer ciúmes à coitada.

Eu sigo o caminho de gravilha à frente do Miguel, estou chateada comigo mesma por ser assim tão ciumenta. Coitado, se calhar nem está interessado nela. Mas então porque é que aceitou o papel. Que raiva!

Ele passa para a minha frente e pára-me com o braço. Ficamos frente-a-frente e eu sinto-me congelada sem saber o que pensar ou como reagir. Uma parte de mim está assustada por ele se ter colocado à minha frente não me deixando avançar, outra parte queria isso mesmo, que ele me parasse os ciúmes e a raiva que eu sentia no momento. Ficamos tanto tempo que parecia que a minha respiração começava a seguir o mesmo ritmo que a dele. Lentamente pega no papel que havia colocado no bolso e amostra-me. Tem um número que me parece ser telefónico.

- É isto que te preocupa? - Claro que é, isso e mais o beijo dela. E no mesmo lugar, amarrota o papel e deita-o no caixote do lixo que está mesmo ao meu lado e continua. - Enquanto o que temos não for oficial, ambos somos vistos como solteiros e livres para encontros com qualquer pessoa. - As palavras fazem-me eco na cabeça. Enquanto se vira para ir em direção ao carro acelero o meu passo para o acompanhar.

- O que queres dizer com isso?

Ele responde muito lentamente.

- Aos olhos deles, somos livres. - Mas não deixa de caminhar.

- Não, quer dizer, sim, isso, disseste “aos olhos deles”? E aos teus, o que somos? - É a vez dele parar, já ao lado do carro faz a pausa para pensar no que eu disse. Olha para mim e mantém-se sem palavras. Abre a porta do carro para eu entrar e continua em silêncio. Os olhos dele têm tanto para dizer mas a boca não o diz. A porta está no nosso meio, se não estivesse eu beijava-o. Derreti com aqueles olhinhos de cachorrinho, de criança inocente. O seu sorriso confirma muita coisa. Eu tenho oportunidade com ele.

- Deixas-me levar-te a jantar esta noite e eu respondo-te a tudo que queiras perguntar. - Diz ele. Dou um grande sorriso de volta e entro no carro. Sim, definitivamente tenho a minha oportunidade com ele.


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