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  • Foto do escritorSusana Cruz

Carnaval Genuíno - I - Na pele dos Caretos de Podence

Podence era uma aldeia de Macedo de Cavaleiros como tantas outras do Portugal interior. A sua população envelhecia lentamente e a atividade local ameaçava estagnar. É por insistência de Zé Carlos que Miguel acaba por aceitar voltar e juntar-se ao grupo dos Caretos da sua Terra. Os 15 anos que o separam da sua partida para França com os pais dispersam-se como se nunca tivessem existido.

Entrava em Podence, agora homem feito, para nunca mais voltar ao conforto obsuleto da velha vida na França. Esperava reavivar amizades, participar nas tradições locais e investir no novo trabalho. O que não esperava era apaixonar-se... não assim tão depressa.

Porque as histórias dos Rituais e Tradições Seculares não são de todo desligados de homens e mulheres com familia, aspirações e esperanças. Por trás de uma máscara há um homem ou mulher como eu e você.

Seja também um Careto de Podence.

Caretos de Podence - Carnaval Genuíno

I

Chocalhando vila acima, imito o Carlos que se mete com novas e velhas, e de qualquer uma arranca um sorriso. É uma sensação fantástica, esta liberdade de sacudir, fazer barulho, entrar e sair das casas dos vizinhos que se riem de nós. Somos brincalhões e festivos, e quanto mais chocalho, mais quero chocalhar.

Relembro as ruas de Podence como se nunca tivesse ido para França. Podia percorrer as ruas de olhos fechados. Quase a chegar ao fim da rua, encontro a minha casa. As janelas estão abertas, ia jurar que as tinha fechado antes de sair! Vejo um vulto na sala, ladrões na vila? Não podem ser ladrões. Seja lá quem for, está em minha casa sem autorização, tenho que tirar tudo a limpo. Deixo os colegas seguirem o caminho deles e vou em direção de minha casa. Ainda tento percorrer a rua sem fazer barulho, mas porra, tinha que ser hoje dia de usar chocalhos! Deixo de o ver pela janela, bom, pelo menos vou pregar-lhe o susto da vida dele! Vou seguindo muito lentamente a rua, depois a varanda. Resulta, estas aulas de karaté que pratiquei durante 15 anos já me servem de alguma coisa, assustar o ladrão, iupi! Até me apetece rir, achar que praticar karaté durante anos é útil para assustar ladrões. Mas aguento, subi sem ruídos lentamente que nem gato à espera do momento oportuno para atacar a sua presa. Oiço ao longe os chocalhos. Isto vai assustar o assaltante antes de eu lhe pregar o grande susto, e rezo baixinho para que o ladrão não tivesse ouvido os meus colegas. Aparece o ladrão na varanda de costas para mim e fico aliviado, só uma empregada doméstica, ou pelo menos veste-se como tal. Como me pude esquecer que a empregada vem sempre limpar a casa nos dias anteriores aos meus pais passarem férias na aldeia. Bem que podia ter feito ontem, hoje é domingo, devia ser proibido trabalhar ao domingo, o dia da família. A senhora traz uma colcha no manado, pega-lhe pelas pontas e atira-a para a grade da varanda. A senhora é jovem, e encantadora, mas não a conheço, não me lembra ninguém da vila. Enquanto arranja a colcha repara em mim pendurado na varanda e dá uma salto para trás. Com um impulso, eu salto para dentro da varanda e faço uma vénia como se pedisse desculpa pelo susto. O susto dela tornou-se num sorriso de alívio. Aproveito que as orquídeas da minha mãe estavam em flor e tiro uma para lhe oferecer. Aceita a flor, sorri timidamente e os seus olhos brilham. Aproveito e pego-lhe em uma das mãos e levo até à máscara como se beijasse a sua mão. Ao levantar a cabeça vejo-a quase sem fôlego. Não é propriamente o ritual que os meus colegas caretos me ensinaram a fazer, simplesmente fi-lo de forma instintiva. E dali veio um sorriso, que não era como os outros, era profundo, tímido, genuíno e inesquecível. Oiço o chocalhar dos meus colegas a aproximarem-se e apresso-me a saltar da varanda de volta à rua. Quando aterrei parecia que me tinha partido todo, os chocalhos deram um grande estrondo em uníssono, e o peso das roupas me puxavam para o chão no momento da aterragem. Dou dois passos adiante, mas paro, e olho para trás para ver novamente a rapariga, estava parada na varanda com a orquídea nas mãos. E fico ali... parado. A imagem derreteu-me, não sei o que me deu nesse momento, mas fiquei submerso no seu sorriso. Os outros atiraram-se para cima de mim, quase caí no chão, mas ainda me consegui equilibrar.

Já me doía o corpo de tanto correr, saltar e chocalhar. Ainda assim eu queria continuar, queria que o dia não acabasse. Com isto voltei à terra, ao universo do careto e segui aos pulos e abanões pelas ruas da vila.


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