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  • Foto do escritorSusana Cruz

Carnaval Genuíno XIV - Noite com amigos

Capítulo 14

MIGUEL



- Filho, acorda. – Oiço a voz da minha mãe. Mas eu só sinto dores de cabeça. - A Matilde está aborrecida contigo, vai falar com ela.

- Matilde, aborrecida, ah?!

- Quê?!? Que é que se passa? Porque é que ela está chateada? - A minha mãe traz-me um comprimido e um copo de água.

- Eu não sei o que fizeste ontem enquanto estavas bêbado… - "Mais quoi?!?" Ela está a falar de quê? Estou mais que habituado ao álcool, e sempre controlei bem!

- Bêbado, mãe?! Só podes estar a brincar comigo, nunca me embebedei. - Mas pela expressão de zangada da minha mãe, tal e qual quando ela descobria as minhas faltas de trabalhados de casa por telefonemas das professoras, não está a brincar comigo. Ai, e a dor de cabeça confirma!

Pego no telefone para telefonar à Matilde, merda, não tenho o número dela. Peço à minha mãe o número e lá telefono.

- Tou? Matilde, é o Miguel, está tudo bem? - falo um pouco atrapalhado, ainda não fiz o esforço de pensar no que fiz na noite anterior, por isso devo esperar qualquer meteorito. Será que abusei da Matilde contra a sua vontade, será que lhe disse alguma coisa que não devesse?

- Tou? Miguel? Como é que conseguiste o meu número? Ah, a tua mãe, manda beijinhos à tua mãe da minha parte. Quanto a ti, não me voltes a ligar. - Ela está mesmo chateada e eu sem saber o que fiz.

- Espera, não desligues, diz-me só o que aconteceu.

- Aconteceu que eu estava a dar-te demasiado crédito, não mereces, vocês homens são todos iguais. Ainda bem que abri os olhos a tempo. Adeusinho. – Desliga-me na cara. Me… ai, a minha cabeça.

Hum, a minha mãe tinha razão, ela está mesmo fula. Saio do quarto e vou ter com os meus pais à cozinha, pode ser que tenham alguma ideia do que se está a passar.

- Ontem, a Matilde parecia alegre, e hoje está fula comigo, nem me quer falar, vocês sabem o que terá acontecido? - Os meus pais olham um para o outro.

- Não sei o que aconteceu antes, mas chegaste a casa entornado. – Diz o meu pai em tom desanimado. Aí começo a tentar recordar, é difícil quando a dor de cabeça ateima em martelar. Acabo de comer o pão com manteiga feito pela minha mãe, e com as duas mãos na caneca começo a puxar pela cabeça. Fica difícil, mais parece que fui abalroado por um comboio tais são as dores de cabeça. Reformulo, tenho ainda o comboio na cabeça.


Na tarde anterior, muito depois do almoço acompanhei a Matilde até casa. Apanhamos dois lapas que não nos largavam. Que chatos. Tive que ser direto com eles.

- Rapazes, podem dar-me um tempinho aqui? Eu vou ter convosco à tasca. Vão indo. – Mais direto que isto só se vos fizer um desenho. Desamparem.

Finalmente a sós com a Matilde. Gosto daquele ar tímido dela. A felicidade fica-lhe muito bem. Ela não quer vir, também não insisto. Se ela pedisse para ficar com ela, deixava o grupinho para trás. Mas ainda é cedo. Dou um passo em direção a ela quando entra em casa. Será que é boa altura para a beijar outra vez? Não será abusar, assim dois beijos no mesmo dia? Será que ela gostou do que lhe dei?

O telefone toca e interrompe os meus pensamentos. Carlos! Podias ter escolhido outra altura.

Pergunta-me se vou ter com eles. Olho para a Matilde e apetece-me dizer que não, que estou ocupadíssimo e não dá hoje, nem sei quando fico disponível. Mas não posso abusar. Ela não me convidou para entrar.

- Sim. Já estou a ir para aí. – Preferir, preferia ficar por aqui.

- Estou, estou perto. Até já. – Calma lá amigo. Não stresses que estou a ir.

- É o Carlos. Se calhar eu vou indo. – Mau timing, como sempre, amigo.

Vá-la, Matilde. Impede-me de ir.

- Vai, eles estão à tua espera. Aproveita. – Pois, tens razão. Um passo de cada vez. Temos tempo. Eu vou ficar na vila. Não volto para França.


- Estranho, não temos leite? – Ouço a minha mãe a falar da cozinha. Leite!? Claro que temos. Oh, não, Mãe! Não quero leite. Por favor!

- Com dores de cabeça, não seria melhor chá? – Cola! Desta vez vai colar!

- Ok. – Boa! Bora fazer chá! Pêssego, por favor. Cá está. Pego nas saquetas e escolho a minha preferida. Safei-me. Uns segundos mais tarde e ela colocava-me leite na caneca.


Ora, onde é que eu ía… despedi-me da Matilde e fui ter com o Carlos à taberna do Celestino, o ponto de encontro dos caretos.

- Miguel, adivinha! Já falei com o Celestino! - Pela cara dele, as coisas correram bem, grande amigo, eu sabia que a história da caçadeira não passava de uma invenção! - E sabes que mais? Ele sempre tem uma caçadeira! - Olho para o meu amigo com um olhar desconfiado.

- E isso deixou-te feliz?! - Ele ri-se ainda mais, mas sozinho, porque a mim não me apetece rir com o que ele diz.

- É que a caçadeira está velha e enferrujada, e a última vez que a usou foi há mais de 20 anos, e desde então nunca mais funcionou! - Ah! Fico aliviado. Por momentos pensei que estavas a ficar louco.

- E que tal, falaste mais alguma coisa com ele? - Acalma o riso mas mantém o feitio alegre

- Sim, a primeira frase que ele disse foi "se eu disparar agora, será que a caçadeira funciona?". Mas foi na tanga. E tivemos uma conversa os dois durante mais ou menos meia hora. Sobretudo sobre a Inês. Ele ficou um pouco emocionado, tinhas razão, ele tem respeito por mim. – Fico feliz pelo meu amigo.

- Então, não te vai perseguir com a caçadeira, como fez ao outro? - Tentei puxar nabos do púcaro.

- Isso não sei, ele disse-me: "Vou mandar arranjar a caçadeira, pelo sim pelo não".

- E entretanto já falaste com a Inês? - Abana a cabeça, ainda não falou com ela. Mas nota-se que falar com o Sr. Celestino já lhe tirou peso de cima.

- Tenho intenção de falar amanhã depois da missa, ainda não sei como abordá-la. - Tenho a sugestão na ponta da língua, que leve a um piquenique a sós. E ele concorda, vê-se o entusiasmo dele.

- Estou orgulhoso de ti, Carlos. Agora é a minha vez, beijei a Matilde. - Parece que o apanhei de surpresa. - Nem mais, já estava tão próximo dela quando os meus pais apareceram. Eh pah, depois de tanto trabalho não ia voltar atrás, tinha que a beijar. - Sim, aquele momento em que, estava tão próximo dela que sentia o calor e a respiração dela. Não tinha como recuar, tinha mesmo que a beijar.

E o resto da noite, devo dizer que se os meus pais não estivessem na mesma casa, não sei se me controlaria. Tantas vezes que estivemos tão próximos, conseguia cheirar aquele perfume que ela usava. E as vezes que nos cruzamos tocando um no outro, a cozinha é pequena e queríamos cozinhar os dois. Na verdade, ela queria cozinhar, eu só queria estar mais próximo dela, e se possível cruzar-me com ela. E enquanto ela virava as carnes na grelha, eu ficava a olhar para ela, ali mesmo à minha frente. Vejo e revejo a Matilde a preparar as travessas e a dar-me ordens como se fosse a minha mãe. Mas gostei de receber ordens dela. Ai, se os meus pais não estivessem na divisão ao lado…

-Filho, acorda. Estás a sonhar com um ar de felicidade. Sonhos não são realidade, moço. – Lá está o meu pai outra vez a interromper o que não deve ser interrompido.

- Calma, pai, estava só a tentar lembrar-me do que se passou ontem, e para já só consigo lembrar-me do rico almoço que tivemos. - Bebo o resto do café e oiço o meu pai a murmurar enquanto volto para o quarto.

- Pois, pois. Chama-lhe almoço, eu sei o que estás a pensar. Já tive a tua idade.

- Espero que não tenhas comido demasiado, o almoço é servido daqui a uma hora. – Oiço a minha mãe nitidamente mesmo com a porta do quarto fechada.

Deitado na cama olhando para o teto tento relembrar um pouco mais da tarde anterior. O Carlos quis festejar e convidou o nosso grupo de quatro caretos para uma noite em Macedo, insisti em irmos de táxi, cabíamos num só táxi e assim podíamos beber pelo menos um copo cada um de nós.

Palavra puxa palavra, festejo após festejo e lembro-me que passamos por três bares. Lembro-me de cambalear um pouco, ainda assim era o menos tocado dos quatro. No regresso apanhamos novamente um táxi e viemos até ao início da vila, onde ele nos deixou. Não queríamos acordar o pessoal e sair a cambalear. Pagamos e ficamos juntos, sentados no banco à entrada da tasca do Sr. Celestino. Os outros dois foram lentamente em direção a casa deles, eu e o Carlos ainda ficamos por mais um tempo a olhar para as estrelas. Não me consigo recordar se fizemos algum barulho, mas apareceu o Sr. Celestino.

- Rapazes, vocês estão bem? - O Carlos estremece, o futuro sogro vê-o numa condição que não devia.

- Sim, estamos, só estamos a ver as estrelas e a… conversar. - Enganar quem, Carlos, de álcool percebe o Celestino.

- Vocês fedem a álcool, se isto tem jeito. Vamos, e levo-vos a casa. - Ainda tentamos recusar mas não estamos propriamente em condições de recusar acompanhamento.

- Mudança de ideias, eu vou com o Carlos e as minhas filhas vão com o Miguel. - Oh, diabo, o Carlos ia ter um segundo momento a sós com o Celestino, e desta vez não seria uma conversa tão amigável como última.

- Porque é que não trocamos, acho mais seguro ir eu consigo, Sr. Celestino. – Tento ajudar o Carlos.

- Rapaz, até eu já apanhei as minhas bebedeiras, mas é a primeira vez que vejo o Carlos bêbado, serás tu a má influência, será que tenho que ter a conversa contigo, em vez do Carlos? - Prendi a respiração, tentava proteger o meu amigo quando quem precisava de proteção era eu.

- Não, eu estou bem, as meninas vão comigo.

E lá fomos, devagar, devagarinho. As tonturas mantiveram-se pelo caminho, achei mais seguro pôr a mão no ombro da Leonor para me equilibrar. Subir as escadas da minha casa foram como subir o Monte Everest e os meus pais até gozaram comigo por me segurar aos móveis da sala para chegar até ao quarto. Na altura até jurava que havia duas portas de entrada para o meu quarto.

Os meus pais chamam-me para almoçar e tento não falar nisso durante a refeição.

Será que ela me viu naquele estado, e terei dito ou feito alguma coisa da qual não me recordo? Seja lá o que for, vou tirar a limpo. E não vai ser por telefone, vou a casa dela pessoalmente. Humm, por via das dúvidas vou levar uma flor, é sempre bom ter uma coisa para amansar a fera. Mas não pode ser uma flor qualquer, vou escolher uma rosa do quintal dos meus pais. Se vou à guerra tenho que ir com as melhores armas.


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