top of page
  • Foto do escritorSusana Cruz

Carnaval Genuíno X - Matilde

Capítulo 10

MATILDE



- Matilde, vai ficar tudo bem, o Manuel vai ficar longe por um tempo, vai ficar ao cuidado do pai na casa deles em Santa Combinha. - Respiro de alívio. Já posso caminhar na vila descansada sem passar o tempo a olhar por cima do ombro. O Manuel não vai aparecer para me magoar.

- Querido, eu vou para casa. Não cheguei a descansar à tarde. Até logo. - E beijam-se assim no nosso meio. É tão lindo ver que ainda há casais apaixonados. O Miguel tem muita sorte em ter pais assim tão queridos.

Vou subindo a rua da vila, a Sra. Matos insiste em levar-me até casa. E conto tudo o que se passou entre o Miguel e o Manuel. Desde a prova, em como o Miguel foi extremamente profissional, mas o Manuel não esteve na melhor das atitudes. E conto ainda como fiz as marcas vermelhas das mãos. A Sra. Matos ofereceu-se para me ajudar a limpar os cacos da entrada de casa.

- A Sra. está cansada. Não é justo. – Refilo, mas não adianta.

- Oh filha, há coisas que não se podem deixar para amanhã.

Em conversa com a Sra. Matos fiquei a saber que o Miguel esteve na vila até aos 9 anos.

- Circunstâncias da vida. - Diz a Sra. Matos - Não foi fácil para ele aprender a língua e fazer novos amigos. No início não quis ir para França, depois não quis vir passar férias aqui a Portugal. Mas posso dizer querida, o meu filho está mais feliz que nunca. Estou muito contente, acho que agora ele encontrou o rumo que precisava. Cá entre nós, acho que ele encontrou mais do que um trabalho aqui. Acho que encontrou uma nova esperança de Amor. - Também estou contente de ouvir a Sra. Matos a falar assim… “esperança de Amor”?! Será que está a falar de mim?

Está a ser uma grande mudança para ele, mas também para mim. Na verdade, está a ser uma forte mudança em toda a vila. A vila teve mais emoção nestes três dias do que nos 10 anos em que cá estou. A minha mãe escolheu a vila de Podence por isso mesmo, sempre foi uma vila pacata, já tivemos emoções suficientes quando eu era pequena. Viemos para cá para fugir ao meu pai, era agressivo e exagerava no álcool. Lembro-me que a minha mãe pedia-me para eu me fechar no quarto e dizia que era para dormir mais cedo. Ainda me lembro dos gritos que me acordavam à noite e não me deixavam dormir. Com 8 anos consegui convencer a minha mãe que seríamos mais felizes longe daquela casa, um pouco influenciada pela professora da primária e pelo Sr. guarda que patrulhava a nossa rua. E fomos, fomos pobres mas felizes. Contávamos juntas o dinheiro que íamos ganhando por mês. Sempre ajudei a minha mãe nas limpezas das casas das vilas. Nunca fui a passeios de escola nem comprava doces com os colegas, até os cadernos serviam de uns anos para os outros. Mas fomos felizes juntas. Talvez por isso não tenha muitos amigos e não saia tanto à noite para conhecer rapazes. O Zé Manuel foi o único que se apaixonou por mim e que eu gostei mesmo. Pensando bem, na verdade ele aproximou-se e eu deixei-me ir. Não sei se seriamos apaixonados. Agora que lhe conheço a faceta que o meu pai tinha penso que não é boa ideia estar com ele. Dele sinto mais medo que amor. Distância vai saber bem.

O meu pai faleceu há 7 anos num acidente de carro, conduzia alcoolizado, nada fora do normal, e desde então nós temos ido visitar regularmente a minha avó paterna. Sem o meu pai ela ficou sozinha, não tinha mais ninguém na família. Entretanto foi diagnosticado cancro da mama, e devido à sua idade avançada não pode iniciar tratamento. Convenci a minha mãe de que a minha avó precisava mais dela que eu. Eu ficaria em Podence assegurando o meu trabalho na cooperativa e as limpezas das casas à sua responsabilidade. Estava a ser cansativo, mas aguentava.

Quando dei por mim, estava a desabafar a minha vida com a Sra. Matos. Não compreendo o porquê, nunca criei com ninguém, além da minha mãe, este nível de confiança. E nestes dois dias abri-me tanto com esta família. Com o Miguel e com a mãe dele.

- Tens passado por bocados difíceis, tu e a tua mãe são fortes. - "Vocês são fortes" ouvi o mesmo ontem vindo o filho da Sra.

- Em que fase está a tua avó? - Nem eu própria sei muito bem, sinceramente, tento até fugir um pouco do estado dela. De todas as vezes que a visitei terminei na casinha de banho a chorar sozinha. A minha mãe sabe mas não menciona sequer o assunto. Ela está lá para dar força à minha avó.

- Há três meses atrás, os doutores deram-lhe dois meses de vida, acho que se vai aguentando, vou visitá-la amanhã e fico até sábado. Volto no sábado pela manhã.

- E que tal almoçares connosco no sábado? Fazemos uma tarde em família. - Passar a tarde com eles seguramente me ajudaria a recuperar forças para mais uma semana. Aceito do fundo do coração.

- Eu levo a comida e faço o almoço. - Digo alegremente.

- Oh, querida, convidado não faz a comida. Nem pensar.

- Por favor, eu prometi ao Miguel que ensinaria o pouco que sei sobre gastronomia da região. Assim aproveitava a fazer umas iguarias. Que me diz? - Acabo por insistir mais um pouco e a Sra. Matos aceita.

Os dias seguintes foram complicados, o cancro evoluía, não há forma de o parar. A minha mãe não me deixou ver a avó. Só pode ser mau sinal. Nas últimas visitas a minha avó mostrava o sorriso e abraçava-me com a pouca força que tinha. As dores felizmente estão a ser controladas com os medicamentos fortes, mas também não permitem que se mantenha acordada para aproveitar o pouco tempo acompanhada. Ajudo a minha mãe com os afazeres de casa, assim ela pode estar mais tempo com a avó. Uso luvas de borracha para proteger as mãos dos produtos abrasivos, afinal ainda tenho as palmas das mãos a cicatrizar.


Comments


Susana Cruz.jpg

Olá, que bom vê-lo por aqui!

Espero que goste das minhas partilhas, sempre que tenha sugestõe comentários ou ideias, fico feliz que partilhe também comigo.

Fique a par de todas as publicações: 

Obrigado por assinar!

  • Facebook
  • Instagram
  • Twitter
  • Pinterest
bottom of page