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  • Foto do escritorSusana Cruz

Carnaval Genuíno VIII - Dia do Entrudo

MATILDE



Terça-feira, dia do entrudo. Tenho as tarefas de casa e de limpeza adiantadas, posso relaxar. Mas decido outra coisa, vou, pela primeira vez, ver a festa dos caretos. Hoje eles reúnem-se todos ao final da tarde, no descampado e se o meu careto existe, tem que lá estar com os outros. Sinto-me uma adolescente, perdida de amores por um admirador de máscara. Não me recordo de ter sentido alguma paixoneta assim tão forte. O Zé Manuel foi o único rapaz na vida. Não dou letra a espertinhos, assim tipo o Miguel. Apesar de muito educado, já começa a esticar-se demais para meu gosto. O cavalheirismo deve ser parte da faceta de sedutor dele, há homens com segundas e terceiras intenções. Jantar com ele, era só o que faltava. E toca guitarra. Deve ter aprendido para lhe ser mais fácil de conquistar as moças lá do estrangeiro… da França, acho eu.

Mas suspiro. Ao mesmo tempo foi com ele que me ri mais desde há uns meses para cá. Desde que a minha avó foi para o hospital. Tem sido só trabalho, casa e limpezas. Não paro tempo nenhum para respirar. E com o Miguel, parei. Uns minutos me bastou ao seu lado para descontrair. Dá-me paz, não sei porquê. Só o conheço desde ontem e já me senti à vontade com ele. Tudo tão rápido e isso dá-me medo. Com o careto é tudo tão mais fácil. Não sei quem ele é, por isso não tenho que ter medo.

Almoço sem conseguir deixar de pensar no Miguel e no meu careto. Para alguém que nunca teve aventuras românticas na vida, aparecem duas ao mesmo tempo. Dou por mim a sonhar acordada com o careto, será que vou conseguir ver a cara dele? Ou será que vai desaparecer da mesma forma que apareceu. Quem será? Poderá ser alguém de outra aldeia? Ou alguém conhecido? Não coloco de parte que seja algum dos filhos dos Senhores Castro e Silva ou da dona Júlia. Sei lá, que estejam… de visita à vila. Se assim for, ele regressa à sua cidade brevemente e perco-lhe o rasto. Talvez seja melhor assim. Eu estou noiva do Zé Manuel e é assim que devo ficar.

Por volta das duas horas da tarde oiço o toque frenético da campainha, vou a correr atender, parece ser algo grave. Ao abrir a porta vejo o Zé Manuel, vermelho e com olhar de meter medo.

- Estiveste com o francês? - Grita para mim.

Quem? Não sei quem é o francês. Ah não! Sei, sim senhor, é o Miguel. O que é que ele quer do Miguel? Já lhe bateu, será que vai andar outra vez à bulha com ele? O que é que hei-de fazer? O Manuel parece estar fora de si. Ele inclina-se para mim, cada vez mais ameaçador. Instintivamente sou dois passos atrás e tento fechar a porta para fugir dele, mas ele prende o pé na porta e dá um encontrão para a abrir. A porta faz um barulho estridente contra a parede e ecoa pela rua. Avança na minha direção e bate-me na cara, perco o equilíbrio e vou contra a jarra de porcelana da minha mãe que estava junto à entrada. A jarra parte-se com o meu peso e ali fico deitada sobre ela de costas para ele. Por favor, não me batas.

Ele vira costas e vai-se embora. E faz-se silêncio. Ele deixou-me ali em cima dos estilhaços. Dói mais o coração do que as mãos que assentam nos restos partidos da jarra. Fico ali no chão, ainda meia atordoada com o susto.

“Estiveste com o francês.” A frase ecoa na minha cabeça. Ele vai bater no Miguel! Não há duvidas. Dou um salto, levanto-me e deito-me a correr pela rua em direção à casa do Miguel. Corro de chinelos de quarto e deixo a porta de casa aberta! Não interessa, quero é que avisar o Miguel que o Zé vai na direção dele. Ele tem que fugir. Quando chego à esquina da casa no topo da rua, fico só a espreitar rezando para que o Zé não me veja, já lá está a bater à porta com toda a força que tem. Espero que o Miguel não esteja em casa. Um dos vizinhos diz que o Miguel está com os caretos na tasca. Nem espero pelo Manuel, se o Miguel está na tasca, é para lá que vou, tenho que impedir esta confusão, pelo menos enquanto o Manuel está neste estado.

Entro na tasca, está apinhada de gente, tento abrir caminho chamando pelo Miguel, os caretos indicam-me a mesa ao fundo da sala e é para lá que eu vou. O Miguel está a conversar com o Sr. Celestino. - Miguel anda, tens que fugir. – Agarro-lhe pelo braço e puxo-o. Caramba, não resistas, anda.

- Qual é a pressa? Para onde e porquê? - Ele está confuso e segue-me com pouco entusiasmo. Mas de repente para-me e faz-me olhar nos olhos dele.

- Calma. Se houver algum problema podemos resolvê-lo, não temos de fugir. - Calma?! O Zé vem para lhe bater e ele está a pedir-me calma?!

- Miguel, o Zé vem nesta direção para te bater! Tens de vir comigo, anda, por favor. - E continua a não se mexer. Deixei de o forçar para vir comigo. Não adianta forçar.

- Tens a cara vermelha. – E repara então nas minhas mãos, cheias de sangue, nem eu tinha a noção da gravidade das feridas nas minhas mãos. - Como é que isto aconteceu? – E segura as minhas mãos pedindo-me explicações como se eu fosse uma criança que acabava de fazer asneiras e tinha nas mãos as provas do que tinha feito. Não consigo reagir mais. Não quero admitir que o Zé me bateu. Ainda tento mexer a boca para pedir para sairmos dali, mas não sai nenhuma palavra. Essa era a vergonha de quem levou uma sova do próprio noivo. Um dos caretos ao lado puxa uma cadeira e obrigam-me a sentar. O Miguel não me larga as mãos. Devo estar em estado de choque, porque não consigo mesmo dar ordens ao meu corpo para reagir.

O Miguel está cada vez mais preocupado, ele compreendeu tudo sem que eu precisasse de falar. Os outros em volta perguntam o que se passa, e o Miguel só responde: Manuel. - A taberna ficou de repente silenciosa.

- Tinhas razão, ele está cego. – Ouve-se a minha voz fraca, tão fraca que mal me ouvi a mim própria.

- Miguel! Mostra que és homem! - O grito ecoa pela tasca. O Miguel não responde, mantém-se em silêncio, ainda a olhar para mim. Respira fundo, levanta-se e larga-me as mãos, vira-se e caminha lentamente em direção do Manuel. Miguel não vás.

Os que estavam entre os dois foram abrindo caminho ao Miguel. Parecia uma cena de filme de cowboys. Não quero isso, nunca pedi tal coisa. Mas não consigo evitar o encontro deles.

- Não, Miguel, por favor, ele é perigoso, já sabes. - Os outros caretos tentavam demover o Miguel alertando para as consequências. E o Miguel nunca desviou o olhar do Zé Manuel.

- Bateste na Matilde? - Diz o Miguel frente a frente com o Manuel. O peito do Manuel inchou como se tivesse orgulho do que fez, e aí senti a raiva a ferver, era minha vontade de lhe dar uma sova eu mesma.

- Não é da tua conta, é minha noiva. Posso fazer o que quiser com … - sem conseguir terminar a frase levou um soco no meio da cara e caiu no chão inanimado. Os caretos agarram o Miguel.

- És um merdas! Um cobarde! Só um cobarde é capaz de levantar a mão a uma mulher, à própria noiva. - O Miguel vai-se deixando arrastar pelos colegas para longe do Zé enquanto lhe dizia umas boas verdades. Ele tem razão, como foi capaz de me bater. E o Miguel defendeu-me.

- Calma, Miguel, ele vai ter o que merece. Nunca devia ter levantado a mão a uma senhora. Isso acabou com a reputação dele. - Enquanto o Zé Carlos acalma o Miguel, outros dois homens levam o Manuel para fora da taberna, ainda inconsciente.

Levanto-me e vou ter com o Miguel e o olhar dele torna-se ternurento, mas triste. Aproximo-me dele e agarro no seu braço para o puxar para longe da cena. E ele abraça-me.

- Não vou deixar que ele te bata outra vez. – Abraça-me e eu deixo. Ele tinha razão. O Zé tornava-se violento também comigo.

- Anda, eu trato-te dessas feridas. - Diz o Miguel. Ainda abano a cabeça e abro a boca para recusar, mas ele nem me deixa falar - Deste-me escolha quando foi o contrário? – Deixo que me conduza até à cozinha.

- Celestino, pode-me arranjar o estojo de primeiros socorros? Deixe estar, eu trato dela. Vá lá fora controlar a multidão, a menina Matilde precisa de um bocado de tempo sozinha para recuperar. - Defende o Miguel.

Longe da confusão, começo a respirar lentamente e a acalmar-me. Ele tem mais jeito do que eu para curativos. Vai tratando com delicadeza e lentamente, os arranhões da minha mão do lado direito e depois vai para a mão do lado esquerdo.

Já mais calma reparo que ele está vestido de careto. Não sabia que ele fazia parte do grupo. E vejo a máscara pendurada no cinto, pego nela para ver melhor. Máscara vermelha de cruz na testa e duas linhas de cada lado da cara. Exatamente a máscara do careto misterioso. E compreendo tudo agora. O Miguel é o careto misterioso, o meu careto. Mais uma vez o meu coração começa a bater mais forte. Ainda sem ter terminado o curativo na mão esquerda ele faz uma pausa e olha para mim e percebe em que penso.

- Tu és "o" careto? O careto da varanda da… tua… casa? - Custa acreditar. É bom demais tê-lo à minha frente a cuidar de mim. O Miguel presunçoso, atiradiço, cavalheiro e carinhoso é o meu gentil admirador misterioso?

- Sim. Espero não te ter desiludido. - Diz ele. Lanço um sorriso e salto para os braços dele e apertando-o forte. Ele retribui o abraço.

- Parece que ficaste contente.

- Obrigada pela flor. Foi a primeira vez que me deram uma flor na minha vida. - Digo eu ainda abraçada a ele. O Zé Carlos entra na cozinha interrompendo o abraço.

- Miguel! Os teus pais chegaram. - Fico atrapalhada e largo de imediato o Miguel.

- Desculpa Carlos, não é o que estás a pensar, não há maldade aqui. - Ele abanou a cabeça e confirmou.

- Eu não tenho nada a ver com isso. Não me meto, e ainda bem que vim eu. Juízo pessoal.

- Podes ficar descansada, o Carlos é de confiança. - E o Miguel continua a fazer o curativo. Tenho dentro de mim uma criança que quer saltar de alegria por ter descoberto a prenda de natal debaixo do pinheiro.

- Os teus pais estão lá fora à tua espera, não vais ter com eles?

- Estou a acabar, relaxa.

As mãos dele continuam a tocar nas minhas, de uma forma cuidadosa e especial. Quando termina arruma os produtos na caixa e para à minha frente a olhar-me nos olhos. Senti-me absorvida pelo olhar dele, hipnotizante. Os olhos dele são verdes, ternurentos, ninguém diria que acabara de deitar um homem forte ao chão com um só soco.

Segura-me as mãos e sorri.

- Conheces os meus pais?- Abano a cabeça negativamente. - Vamos, eu apresento-te. - Saímos da cozinha em direção aos pais do Miguel.


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