top of page
  • Foto do escritorSusana Cruz

Carnaval Genuíno IX - Queima do Entrudo

Capítulo 9

MIGUEL


Ela atirou-se a mim num abraço que até me assustou. Ainda me passou pela cabeça que ficasse chateada por ter escondido que eu era o careto da varanda, afinal não. E retribuo o abraço.

- Parece que ficaste contente.

- Obrigada pela flor, foi a primeira vez que me deram uma flor na minha vida. - A sério?! Nunca tinhas recebido uma flor?!

Aparece o Carlos e interrompe o momento.

- Miguel, os teus pais chegaram. - Mesmo na altura errada, mais tarde vou ter uma conversa contigo, amigo. A Matilde larga-me de imediato e desculpa-se.

- Não tenho nada a ver com isso, não me meto. E ainda bem que vim eu. – Obrigado, meu grande amigo.

- Podes ficar descansada, o Carlos é de confiança. - Ele não vai falar nada com ninguém, ele é um tipo à maneira. E continuo a fazer o curativo, mesmo com a Matilde a replicar é melhor terminar agora do que esperar e deixar entrar infeção. Estas feridas estão piores do que estava a minha na cara, o que terá acontecido? Como é que ele ousou magoar estas mãos delicadas que tenho à minha frente. Ainda estou a ferver aqui dentro. Nunca fui defensor da tortura, mas há pessoas que merecem passar por uns tempos difíceis.

E pronto, agora ela já sabe que eu sou o careto. O que pensaria ela do careto? Aquele abraço diz tudo. Ela está a sorrir tanto, dava tudo para saber o que será que está a pensar.

Terminado, agarro as mãos dela. Apetece-me beijá-las. Não posso. Seria abuso.

- Conheces os meus pais?- abanou a cabeça dizendo que não - Vamos, eu apresento-te.

Saímos da cozinha, de mãos dadas em direção aos meus pais. Lá estão eles, radiantes como sempre, e mais felizes que nunca por verem o seu querido filho na terra natal, claro.

- Como correu a viagem? Trouxeram o que vos pedi? - Olhando para mim mesmo neste momento pareço uma criança que vê os pais chegando de viagem de férias ansioso para ver as lembrancinhas de viagem.

- Claro que sim, como podíamos ter esquecido se tu já tinhas colocado tudo no carro antes de saíres.

Os meus pais foram abordados por várias pessoas na tasca que os cumprimentavam, nada melhor que um reencontro de amigos que não se vêm há um ano para esquecer temporariamente o mau encontro de há quinze minutos atrás. Volto a dar a mão à Matilde, ela estava quase a fugir, e puxo-a para mim. Por momentos volto a pensar no que ela passou com aquele covarde, ainda olho em volta assegurando que ele não está por perto.

- Ai, filho, já não tenho a tua idade, tenho que descansar um pouco. Vou com o teu pai para casa desfazer as malas. - É verdade, a viagem foi longa.

- Eu ajudo-vos.

A Matilde para-me e intervém.

- Deixa, eu vou com os teus pais, já conheço a casa e ajudo no que eles precisarem. Tu tens que aproveitar o pouco tempo que te resta como careto de Podence, daqui a umas horas termina a festa. - A Matilde parece feliz outra vez, e isso deixa-me mais calmo. Ao ficar com os meus pais fica em boas mãos.

- Promete-me que ficas com eles até eu te levar de volta a casa, não quero que fiques sozinha. - Ela aceita.

- E quem é esta menina que diz conhecer a minha casa? – Pergunta-me a minha mãe. – Tão pouco tempo aqui e já convidas as amigas para nossa casa?

- É a filha da dona Isaura. - De repente a minha mãe mostra-se preocupada

- Está tudo bem com a Dona Isaura? Como está ela? - A minha mãe tem um dom para se preocupar com a saúde de toda a gente. Mas desta vez não está muito longe. Embora não seja a dona Isaura quem está doente, mas sim a avó da Matilde.

- A minha avó precisa mais da minha mãe do que eu. - Responde a Matilde como uma frase já orquestrada, ainda assim acho que a minha mãe já fica descansada com a resposta. Despeço-me dos meus pais e acompanho-os até à porta da tasca de onde vejo os três a subir a rua juntos, e já conversam entre eles. Ainda bem que se dão bem.

Os caretos saem também da tasca, e eu junto-me ao grupinho. Voltamos às ruas a chocalhar por caminhos semelhantes aos de Domingo, voltando a entrar nas casas e dançando com qualquer um que nos aparecesse na rua.

Quando chegamos a minha casa os outros ficam parados em baixo à minha espera. Peço ao Carlos que me segure a bengala. E vou subindo até a porta da minha casa. Na varanda, atraídos pelo barulho dos chocalhos, apareceram os meus pais e a Matilde, linda como no primeiro dia. Desta vez não tinha que me esconder. Salto para a varanda, e, com um joelho no chão, apanho uma orquídea para oferecer a minha mãe Tiro a máscara para beijar a mão da minha mãe. A minha mãe brilhava de felicidade, não resisto e abraço-a

- Adoro-te. - digo baixinho só para ela ouvir. Logo de seguida abraço o meu pai.

- Filho, sinto-me orgulhoso. - Depois faço com a Matilde o mesmo que já fiz à minha mãe, mais uma orquídea, espero que a minha mãe não fique chateada de lhe roubar as flores. E entrego em mão, tal como da primeira vez, mas sem máscara, beijo a sua mão e olho nos seus olhos. Também ela brilha de felicidade. Até eu, sinto uma felicidade que nunca tinha sentido. Só queria que o tempo parasse ali. Queria correr para os seus braços. Levanto-me e danço um pouco a dança dos caretos e todos os colegas também dançam lá em baixo. Faço vénia para me despedir e salto da varanda para a rua.

- Venham, vamos queimar agora o entrudo no descampado. - Ouço o que me parece uma confirmação da minha mãe e sigo com os meus colegas para o local da queimada.

Chegamos ao descampado. Dançamos e chocalhamos mais um pouco. Os nossos familiares vão se juntando à volta para ver a queima do Entrudo. Mesmo não vendo daqui a Matilde, tenho a certeza que ela cá está. O chefe do grupo lança a chama ao careto gigante e este começa a arder. De seguida a dançamos uma última vez à sua volta. Ao terminar todos nós nos juntamos para um abraço de grupo e todos ao mesmo tempo tiramos as máscaras. Terminou o Entrudo de Podence, começa a quaresma.

Enquanto os outros já se dirigem aos familiares e amigos, eu vou, lado a lado com o Zé Carlos, falar com o Sr. Presidente. Tenho que esclarecer a confusão que tive com o filho dele. O Carlos coloca-me a mão no ombro e tranquiliza-me.

- Eu estou do teu lado. Eu já desconfiava há algum tempo que o meu irmão maltratava a noiva. Nem o nosso pai aprova isso. - Os pais do Carlos estão sérios, mas calmos. Estão certamente à espera de uma boa justificação para o filho ter ficado inconsciente umas horas antes.

- Bom dia, Sr. Pereira. Antes de mais, como está o Zé Manuel? - Mantendo o olhar no Sr. Pereira, também queria saber sobre o estado de saúde do seu filho, apesar de tudo, o pai não tem culpa do que o filho fez.

- Recupera, obrigado. Posso saber o que se passou? – Sim, continuava calmo, mesmo que já tivesse uma ideia do que se passou, com certeza que queria ouvi-la de mim.

- Eu e o Zé Manuel nunca nos demos bem, já vai desde a época de crianças. De alguma forma, ele acreditou que eu me estivesse metendo com a noiva, o que não era verdade. Não foi intencional que ela aparecesse na prova da cooperativa ontem, não foi intencional que ela estivesse cuidando da casa dos meus pais. Se ainda se lembram do jantar de Domingo, eu nem a conhecia nessa altura e ele já não me via com bons olhos. No entanto o seu filho não conseguiu controlar o seu temperamento e atacou-me ontem em plena prova, em frente ao Sr. Justino e ao Sr. Oliveira. Tentei esquecer o assunto, mas hoje atacou a própria noiva. Não tinha intenção de magoar, mas sim que ele sentisse um abanão para acordar para a vida e não repetir o mesmo erro. Lamento a situação que coloquei o seu filho, mas por favor compreenda que não se bate numa mulher. Chegou a ver as feridas nas mãos da Matilde? - Ele ficou pensativo, a esposa abraçou-se a ele e ele devolveu o abraço. O Carlos ainda estava ao meu lado e de vez em quando abanava a cabeça a confirmar a história.

- Como está a Matilde? – O Sr. Pereira parece preocupado com a Matilde.

- Tem a cara vermelha e as palmas das mãos vão ficar com cicatrizes.

- Ela precisa de ir ao hospital?

- Não, nós estamos a tratar disso. São superficiais. Com uma pomada anti-inflamatória e cicatrizante ela vai ficar bem.

- Bom, rapaz, eu vou falar com o meu filho. Ele fica comigo uns tempos na casa de Santa Combinha. Talvez o melhor seja de o afastar um tempo da vila e quando ele se sentir que deve, volta. Vocês os dois, cuidem da moça. Ouvi dizer que a avó está com cancro, não deve estar a ser nada fácil para ela. - Como é que ele sabia do cancro? O Carlos foi apanhado de surpresa com a notícia.

- Carlos, não espalhes a notícia, a Matilde não quer que se saiba na vila. - Ele aceita o meu pedido.

- Sr. Pereira! – Levanto a mão em gesto de cumprimento e olhei-o nos olhos, ele fez o mesmo, apertamos as mãos para nos despedirmos.

O Sr. Pereira vira costas e leva a esposa pelo braço até ao carro estacionado mais adiante. Por acaso sinto-me aliviado por ter o pai do Zé Carlos do meu lado. Bom, não é do meu lado porque estamos a falar do filho dele. Mas considerando o que aconteceu até correu bem esta conversa. Lado a lado com o Carlos, seguimos em direção dos meus pais, prendo a máscara no cinto e abraço-os. Depois dirijo-me para a Matilde.

- Matilde, vai ficar tudo bem. O Manuel vai ficar longe por um tempo, vai ficar ao cuidado do pai na casa deles em Santa Combinha.

Os meus pais insistiram que queriam saber o que se passava e eu tive que contar a versão mais curta que existia, já estava farto de ter que reviver toda história outra vez.

- Assim em resumo, o Zé Manuel, ontem deu-me um pêro. Hoje bateu na Matilde e eu devolvi o pêro, ele ficou caído no chão e acabamos com a violência. Pronto, alguém quer uma cerveja? - Eu só queria encerrar o quanto antes esta história. O Manuel está numa aldeia vizinha e a Matilde está protegida comigo, é só isso que me interessa neste momento.

- Uma cerveja, então não eras homem de vinhos?!? O que é que te aconteceu, filho? Deixamos-te 2 dias na vila e encontramos-te neste estado? - Rimo-nos todos, exceto a minha mãe.

- Filho! Andaste à bulha? Pensava que te tinhas deixado disso.

- Oh, mãe. Por favor. Já resolvi a história com o pai do Manuel. Só quero pôr um ponto final nisso. E não pensar mais na coisa!

- Sr. Matos, depois eu conto a história, não se preocupe. – A Matilde tenta acalmar a minha mãe. Ainda bem, elas depois que resolvam isso. Eu não quero pensar mais nesse assunto.

- Querido, eu vou para casa. Não cheguei a descansar à tarde. Até logo. - Beijaram-se, ali mesmo à minha frente. Desisto, nunca me vou habituar a ver os meus pais a beijarem-se em público.

- Eu vou consigo para cima. Aproveito e explico já tudinho. – Diz a Matilde acenando aos presentes.

Despedi-me da minha mãe e da Matilde e foram as duas, vila acima para a casa dos meus pais.

O meu pai tem razão, desde que cá cheguei mudei. A minha vida tem estado estagnada durante os dois últimos anos, o único momento fora da rotina foi o momento quando encontrei a minha namorada e o meu melhor amigo aos beijos no bar. Foi a prova de fogo para o controlo da minha raiva, a qual falhei, aproposito. Quando dei por mim estava a prestar depoimentos à polícia porque parti um contentor no caminho de casa. Bati no contentor para não bater na cara do Claude. Quem diria que 10 anos de amizade não eram importantes para ele, só lhe faltava a minha namorada na lista de amantes dele e conseguiu.





Comments


Susana Cruz.jpg

Olá, que bom vê-lo por aqui!

Espero que goste das minhas partilhas, sempre que tenha sugestõe comentários ou ideias, fico feliz que partilhe também comigo.

Fique a par de todas as publicações: 

Obrigado por assinar!

  • Facebook
  • Instagram
  • Twitter
  • Pinterest
bottom of page