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  • Foto do escritorSusana Cruz

Carnaval Genuíno VII - Amigos à varanda

MATILDE


O Sr. Matos insistiu tanto que eu acabei por aceitar a boleia. Sei que o Zé não vai ficar nada contente, mas não consigo subir mais com estes sacos, são muito pesados.

Neste momento só me apetece chorar. O Zé está tão diferente. Tem estado tão agressivo, comigo e com todos, e acabou por agredir o Sr. Matos, o novo Enólogo da vila. O Sr. Matos não fez nada de mal para ele reagir assim.

Depois de sair da cooperativa ele gritou comigo dizendo que não me queria sozinha com ninguém. Ele nunca foi muito apaixonado nem carinhoso, mas… também nunca tinha sido assim violento.

Obrigou-me a subir sozinha a vila como castigo, não sei o que se passa com ele. Estou confusa, será que é isto que eu quero para o meu casamento?

O Sr. Matos tem sido muito atencioso, parou e insistiu para me ajudar. Imagino que a minha cara de cansaço contribuiu para isso. Pegou nas minhas compras, abriu a porta do carro, é um autêntico cavalheiro, com isto fez-me sentir emocionada e soltei um soluço e uma lágrima.

Sentados no carro pergunta-me para onde vou.

- Para sua casa. - Tão depressa respondo como me arrependo da resposta, soou tão mal.

- Sem querer ofender, mas… disseste: a minha casa? - Eu, com muito custo, aceno com a cabeça.

- Oh, Matilde, sinto-me muito lisonjeado. Nem imaginas a alegria que me davas, mas não sou desses, sou contra ao sexo no primeiro encontro. Ao terceiro ainda vá que não vá, mas nós ainda mal nos conhecemos. - Não sei se ele o disse com intenção ou se o disse só a brincar mas não resisto e acabo por rir da sua resposta. Explico a situação e rimo-nos os dois mais um pouco. Estava a precisar deste quebra-gelo. Obrigada, Sr. Matos.

- Assim já me sinto mais aliviado, é que eu sou muito envergonhado e tímido. - Ele parece tudo menos tímido e envergonhado, na verdade parece bem confiante de si e um autêntico Casa-Nova. Mas também devo notar que nunca abusou e sempre foi atencioso, principalmente na cooperativa… Não! Não quero pensar no encontro desta tarde. Nem quero pensar naquilo.

Olho pela janela para a rua. Está escuro e as luzes dos passeios acendem.

Ele conduz muito calmamente vila acima. Aproveito o silêncio e respiro fundo. Sinto-me melhor e confortável. Passado uns minutos o Sr. Matos quebra o silêncio:

- Então, para quando o casamento? - Com esta ele me apanhou, para quando o meu casamento? Estou noiva há quase um ano e ainda não decidimos a data, sempre que sugeria pegar num calendário, ele desfazia-se em desculpas de ter muita coisa a fazer na junta de freguesia com o pai dele ou que fosse depois da candidatura dele, e não vejo hora de avançar.

Aproximamo-nos da casa em silêncio, eu não respondi e ele não insistiu.

- Chegamos. Tens a chave? Toma as minhas, abre a porta e eu levo os sacos de compras! - Oferece-se e eu, não sei bem porquê, não recusei, talvez porque sentia-me bem ter um cavalheiro a ajudar.

Ele entra com os sacos de compras e eu fecho a porta atrás de nós.

- Estas compras cheiram bem. - Diz ele a sorrir. - Posso espreitar?

- Na verdade as compras são para o Sr. Matos e para os seus pais.

- Vamos tirar uma coisa a limpo, não me trates por você ou senhor. Trata-me por tu, se calhar até tenho a tua idade. - Aceito contrariada. Não vai ser fácil, ele foi-me apresentado como Doutor e teria que o tratar por tu. Confesso que me faz confusão.

Enquanto já distribuía as compras, o Sr. Matos pede silêncio.

- Estás a ouvir chocalhos? - Ouvi, ouvi chocalhos, sim senhor. Paro de tirar as compras do saco e direciono a minha atenção para o som dos chocalhos dos caretos. Pela primeira vez dou valor a este ruído. Vem-me logo à ideia o Careto de ontem. Foi a primeira vez que alguém me tinha oferecido uma flor. Um admirador misterioso. Sem falar vou imediatamente à varanda, abro a persiana e a janela e procuro a origem dos sons. Foco o olhar para o fundo da rua, quero muito vê-lo mais uma vez. Está de noite e o grupo passa ao longe, nem abrandam. Apresso-me a olhar para todos os lados em volta e nada. Talvez estivesse novamente escondido atrás dos vasos à espera do momento da surpresa, mas não. Ele não voltou. Ao meu lado só está o Sr. Matos e nem o senti a aproximar-se. Ele deve pensar que estou maluca.

- Está tudo bem? Pareces atrapalhada. - Diz ele a olhar para mim preocupado. Mas claro que estou atrapalhada. Estou a abrir a persiana de casa à noite para ouvir os chocalhos?! Uma desculpa rápida, se faz favor, vá Matilde. - Estava só a verificar que estava tudo em ordem ou se teria ficado algum tapete esquecido na varanda. Pode ir para dentro, está tudo bem por aqui.

Ele não vai para dentro de casa, em vez disso, apoia os braços na varanda a admirar a rua e fica em silêncio. Faço o mesmo e lá ficamos por uns quinze minutos. Eu sinto-me triste por não voltar a ver o careto, mas ao mesmo tempo, respiro fundo e sinto-me em paz. Não sei quando foi a última vez que parei para apreciar as ruas iluminadas pelas estrelas e pela Lua. Admiro o silêncio e a escuridão. As luzes da rua que entretanto acenderam salientam as arestas irregulares das casas que me rodeiam. Vê-se de vez em quando um pequeno morceguito a voar perto, e as borboletas noturnas que se aproximam das lâmpadas dos candeeiros.

Ouve-se novamente os ruídos ao fundo e desta vez vêm na nossa direção, volto a sentir o entusiasmo de os ver. Dos cinco caretos que passeavam, dois param em frente à nossa varanda e conversam alguma coisa entre eles. Foco a minha atenção a tentar perceber se algum deles será o meu careto. Mas não. As máscaras são diferentes, e se é verdade que os olhos mostram a alma, nenhum deles mostram a alma do meu Careto. Acenaram e o Miguel acenou de volta. Forço um sorriso e também acenei.

- Matilde, agora que toda a vila sabe que estás na minha casa a esta hora da noite, o que vais fazer? - imediatamente pensei no Zé Manuel e o seu dom de saber tudo o que se passa na vila. Que coisa, os caretos cochichavam isso há pouco, de certeza. Que estou na varanda com o Dr. Matos. Já vou ter que as ouvir!

Coragem. Eu tenho uma razão para estar aqui.

- Vou fazer o que é minha obrigação, continuar a preparar a casa para os seus pais, teus… pais. - Dito isto, volto para a cozinha para arrumar as compras. - O tempo lá fora está a arrefecer, e aconselho o Sr. Matos, corrijo: o Miguel… a fazer o mesmo.

Vou cortando as carnes. Estou um pouco triste por não ver o meu Careto novamente, será que desistiu, será que não vai voltar? Porque é que esperou estes anos todos para vir ter comigo?

Divido as carnes entre as que vão diretamente para o congelador e as que vão a marinar com vinho e alho.

- O que estás a preparar? - O Sr. Miguel está ali, por momentos até me esqueci dele.

- Estou a colocar a carne em vinha d’alho. - Também me estava a esquecer que eu tinha prometido que lhe iria mostrar algumas receitas da região.

- A minha mãe costuma a chamar a isso: travessas. Vocês aqui na terra chamam isso de vindálho? - Ele diz isto com um ar natural, diria até ingénuo, que eu não me consigo deixar de soltar uma gargalhada.

- Vinha d’alho é o tempero de vinho e alho que se colocamos nas carnes. Podemos juntar outros condimentos, mas a base é feita de vinho e alho para marinar. - Ele sorri envergonhado.

- Para veres que percebo de cozinha, deixa-me dizer-te que aqui o Miguel sabe fritar bife, batatas e ovo. - Levanta o peito de orgulho - Vês, já não passaria fome!

-Tem razão, não é qualquer homem que sabe fazer um prego no prato com ovo a cavalo. Parabéns. - ele olha-me desconfiado.

- Estou perdido, isso foi elogio ou piada? E a propósito que é que é que significa o prego e o ovo a cavalo? - Ele não sabe os nomes dos pratos.

- Bom, um bife com batatas fritas chama-se “prego no prato”, quando acompanhado por um ovo diz se “com ovo a cavalo”. - Os olhos dele arregalam e levanta outra vez o peito a dar um ar de galo.

- Eu sabia! - Pois claro, enfim, aceno ainda a rir-me baixinho.

Como é que estas piadas tão simples que nos fazem rir? Já não me ria há algum tempo. Este momento está a fazer-me bem. Acho que vou ter no Sr. Miguel um bom amigo.

Enquanto ia cortando as carnes e as separando, o Sr. Miguel volta a meter conversa.

- Tu disseste que estavas responsável pela casa, no entanto na vila falasse de uma senhora dona Isaura. Não devia ser ela a tratar da casa dos meus pais? - Nesse momento eu paro de cortar a carne e sem pousar a faca olho para o Sr. Miguel e fico uns segundos em silêncio. A minha mãe está a tratar da minha avó doente com cancro, já em fase terminal, como hei-de dizer sem parecer fria ou sem me emocionar demasiado, não quero chorar à frente dele, mas o assunto é muito delicado para mim.

- Já percebi, tens feito um trabalho fantástico cá em casa, és a pessoa perfeita para tratar da casa dos meus pais. Está tudo muito bem arranjadinho, sem pó, as flores estão bonitas. Pousa a faca e esquece lá que eu perguntei! – Diz tudo isso de rajada como se estivesse a fugir. Pois, tenho a faca na mão e direcionada para ele. Ah, coitado. Volto a sorrir, a reação dele foi muito engraçada. Pouso a faca que tenho na mão, desvio o olhar para a carne.

- A dona Isaura é a minha mãe, ela está em Bragança cuidando da minha avó com cancro, já está em fase terminal.

- Oh! Lamento. - Diz o Sr. Miguel num tom de tristeza. – Eu não sabia disso. - Olho para ele, é claro que não sabia. Não contei a ninguém da vila. Ele é a primeira pessoa a quem o digo.

Porque é que disse a ele e não disse a mais ninguém? Lembro-me então da única pessoa a quem havia dito, o Zé Manuel, e ele nem deu valor ao assunto. Estava preocupado com o projeto de uma construção na aldeia de Santa Combinha. Talvez pela desilusão que apanhei com ele, não contei a mais ninguém.

- Sr. Miguel, a vila não sabe porque eu não lhes contei, só lhes disse que a minha mãe era mais útil com a minha avó do que comigo. Por favor não conte. Não quero ser abordada todos os dias para responder à uma mera curiosidade do pessoal. - Ele respira fundo e aceita o meu pedido.

- Deve estar a ser duro, mas vocês são fortes. A tua avó tem sorte por vos ter às duas. Se precisares de alguma coisa, estou aqui. - Ele parece muito ternurento, mas por mais que goste do cavalheirismo dele, começo-me a sentir incomodada. Será que está a ser cavalheiro com segundas intenções? Olha demasiado para mim. Tento dar distância.

- Vou buscar o vinho que trouxe das cooperativas ao carro, já volto. - Ele deve ter reparado que me sinto incomodada.

Chega à cozinha com 3 garrafas e coloca-as no balcão.

- O que vai ser o jantar? Com que é que devemos acompanhar?

- Se o Sr. Miguel sabe fazer batatas fritas, ou arroz e ovo estrelado, já tem tudo o que precisa para o prato completo de alheira. - Ele pára e olhar para mim. Parece-me que não estava a contar em jantar sozinho.

- Eu vou jantar sozinho? Já almocei sozinho! Estava com esperança que jantasses comigo. – Interrompo o discurso dele. Ficar para jantar… não me aprece. Amiguinhos, amiguinhos, jantares à parte. Gostei muito da conversa, mas está a entrar onde não deve.

- Já deixei o estrugido adiantado, é só acrescentar o arroz que já está aqui lavado e escorrido. Quanto à alheira só precisa de quinze a vinte minutos no forno. Acho que já percebeu que não posso ficar aqui. E se sentir sozinho sempre pode fazer companhia à família do Sr. Celestino. - Olhando para ele vejo desilusão. Fico triste só de o ver assim, mas não posso ceder. A vila é pequena e tudo se sabe.

- Não me leve a mal, por favor. O Sr. Miguel é uma jóia de pessoa, mas não podemos alimentar os rumores dos habitantes da vila.

Faço silêncio para o ouvir, ele respira fundo e começa a falar.

- Em primeiro lugar, não me voltas a tratar por senhor, tenho mais ou menos a tua idade, sou teu vizinho aqui na vila, é a segunda vez que te aviso, à terceira vou-me sentir ofendido. Segundo ponto, a família do Sr. Celestino é fantástica, mas não me sinto confortável no grupo visto que um dos convidados dele já mostrou que não gosta da minha presença, e tu sabes a quem me refiro. Prefiro ficar sozinho do que provocar uma aproximação a essa víbora, desculpa… Desse senhor. Com todo o respeito que tenho por ti, não o suporto! - Compreendo perfeitamente, até eu tenho medo de andar com ele agora que vi o que ele pode fazer. Começo a repensar se quero efetivamente casar com ele ou não.

Começo a arrumar a loiça, mas o Miguel insiste em arruma tudo. Isso aceito, estou cansada e só quero voltar para casa.

- Eu levo-te até casa.

- Não, obrigada. Faço muitas vezes esse trajeto. E é uns metros ali abaixo. Está tudo bem. – Só quero sair dali e ficar distante. O Sr. Miguel começa a deixar-me um pouco desconfortável com tamanha aproximidade. Só quero estar um tempo a sós.

O Sr. Miguel fica à porta enquanto eu me afasto rua adiante. Foi um dia cansativo. E relembro a reação do Zé Manuel durante a tarde desse dia. O que será que aconteceu entre eles para resultar nisto? Disseram-me que eles já se conheciam enquanto crianças. Nunca vi o Manuel assim tão alterado, amanhã tenho que falar com ele. Ao mesmo tempo que penso que não o quero enfrentar. Fico com medo do que me poderá fazer a mim.

Pego na chave para abrir a porta da minha casa, mas reparo que a chave não é minha. É um chaveiro estranho. É o chaveiro do Sr. Miguel. Oh, peguei no errado. Não, o meu chaveiro está na minha mala, no mesmo lugar de sempre. Pois, eu não o usei, usei o do Sr. Miguel. Tenho que lá ir para devolver a chave.

Subo a rua novamente e abrando quando chego a casa do Sr. Miguel. Estou a ouvir uma música que vem de dentro. É só guitarra e voz. Parece a dele, mas será? Deve ser só rádio, ou telemóvel. Ainda assim paro para a ouvir, é em inglês, é fácil entender e é tão relaxante. Quando a música pára, toco à campainha. O Sr. Miguel atende com uma guitarra na mão.

- Ah, então Matilde, mudaste de ideias? – Presunçoso!

- Não, era só para devolver a chave. Peguei nela por engano. Era o Miguel a tocar e cantar?

- Estavas a ouvir atrás da porta? Isso é feio. Se quiseres ouvir tens que ficar para jantar. – E esboça um enorme sorriso.

Não sei bem o que responder. Abano a cabeça, viro costas e vou-me embora. Que coisa, nem me despedi do Miguel.

- Boa noite. – Digo sem olhar para trás e oiço-o a responder. Que coisa. Que má educação, Matilde.

O Miguel toca guitarra. Ah, Matilde, agora já não é senhor… agora já é Miguel… É uma surpresa, ele toca guitarra e canta. Nunca imaginei. Oh, não! Agora a música não me sai da cabeça.


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