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  • Foto do escritorSusana Cruz

Carnaval Genuíno V - Mais que uma prova

O Sr. Oliveira é o primeiro a dar a sua opinião, o Sr. Justino segue-se-lhe. Eu vou acenando e consentindo as suas dicas e opiniões. De vez em quando o meu pensamento fecha-se e deixo de ouvir os intervenientes. Ao meu lado está sentada a rapariga da varanda, e sinto-lhe o cheiro do shampô.

Desvio o olhar na sua direção, mesmo de costas, percorro as linhas do seu cabelo com os olhos. Até que acordo e me apercebo de que o Manuel está ali mesmo ao lado.

Abro a segunda garrafa no mesmo ritual e pouco depois a terceira garrafa. O Zé Manel está cada vez mais impaciente. Parece um vulcão a dar sinais de explodir. Para minha sorte, ele está a ficar igualmente insuportável para os restantes. O Sr. Oliveira, homem habituado a lidar com o mau humor dos seus trabalhadores já se mostra visivelmente incomodado com a dita personagem. A Matilde por sua vez não havia dito uma única palavra, mas aparentemente ouvia o que todos diziam na mesa, embora nada estivesse a apontar ainda.

- Bom, bom é cerveja, um tipo de cerveja dá para tudo. - Diz o ornitorrinco, arrogante como sempre foi, até é um insulto para os ornitorrincos. Os outros ficaram atónicos com o comentário. Para acalmar os ânimos intervenho:

- Caro colega, eu também gosto de cerveja. - Aí todos viram os olhos para mim parecendo confusos, e continuo. - Mas depende do que acompanha. Sejamos realistas, a francesinha do Porto deve ser acompanhada com cerveja, para os tremoços também dá gosto acompanhar com uma cerveja, certo? Não há mal nenhum em apreciar outros tipos de bebidas, temos é que ver o que se adapta melhor à comida e ao momento em questão. - Parece que deitei água na fervura. Os outros acenaram com a cabeça compreendendo o meu ponto de vista, contudo o Manel não pareceria satisfeito.

- Não me venhas com m***s! Não percebes assim tanto de vinhos. – Miguel, não ligues, agora é o álcool a falar. Não te dês ao trabalho de responder. Bêbado como está não sabe o que diz, nem merece resposta.

Quanto aos restantes elementos na mesa já há reação. Ficam surpresos pelo insulto e não compreendem de onde vem tudo aquilo, e olham para mim sem saber como agir. De facto ele está a abusar, mas não seria eu o responsável por pôr ordem na prova.

- Nem é capaz de negar, vocês estão a dar valor a este falhado que faz de conta que percebe de vinhos. Eu tenho razão, viraste vendedor porque és um enólogo falhado, e agora queres vir aqui enganar a gente! Aldrabão!

A ideia de que um vendedor de vinhos é um enólogo falhado existe mas é tão retrógrada e obsoleta. Quem pensa assim, geralmente, acha que vinho branco é próprio para peixes e o tinto para carnes e se recusa a beber vinho Rosé porque o considera vinho de mulheres. E sim, o Zé Manuel é desse tipo de pessoa.

Os gritos e contestações do Zé Manuel tornam-se intoleráveis, o Sr. Oliveira e o Sr. Justino acabam por intervir.

- Oh Zé, és sempre o mesmo… - Avança o Sr. Oliveira.

A partir desse momento deixo os cães à solta de volta do osso. O Sr. Justino e o Sr. Oliveira atiram-se ao Manel.

Viro-me para o vinho que está a minha frente, ajoelho-me, não vá algum copo voar, só quero estar fora do alcance das balas. E deixo que os ânimos se acalmem sem interferir.

Tive que fazer grande esforço para não olhar para a Matilde. Apesar de tudo o Manel estava distraído a discutir com os outros. A mesa dividiu-se em duas fracções, uma parte composta pelos três homens, e a outra por mim e pela Matilde, ali mesmo ao meu lado, calados e tentando não sair afectados com tamanhas exaltações.

A determinado momento das discussões ela olha para mim para não ter que olhar para a cena. Mas está tão envergonhada que esconde a cara com a mão. Afinal de tudo, é o seu noivo que está a fazer o escândalo. Eu não me conseguiria imaginar no lugar dela. O homem com quem ela estava para se casar estava a armar um espetáculo humilhante diante do patrão dela.

Coloco a minha mão na mão que ela tem na mesa, envolvendo sem prender. Ela deixa estar a sua mão debaixo da minha por vários segundos. Ia jurar que ainda apertou firmemente a minha mão. É então que reparo que não tem qualquer tipo de aliança, seria mesmo noiva ou o Manel só estava a exagerar? Largou a minha mão e escondeu a cara de vergonha, com as mãos em posição de reza e olhos fechados.

Quando os ânimos acalmaram, ficamos ainda um tempo em silêncio, os três homens à nossa frente ainda ardem de raiva entre eles. O Zé Manuel e o Sr. Oliveira estão sentados um pouco mais afastados do que até então. Levanto-me e fico novamente de pé, em silêncio, por momentos. Olho para o copo de vinho e provo. Para quebrar o gelo falo sobre o vinho que acabo de provar fazendo comparação com outros que já conheço na França. Quando o ambiente acalmou finalmente, pedi a opinião da Matilde sobre os vinhos em prova. Todos ficaram surpresos.

- A menina Matilde não percebe de vinhos, só de números. - Diz o Sr. Justino. Eu esperava isso do Manel, não do Sr. Justino.

- O Sr. quer expandir o mercado? Então que tal começar a ouvir as senhoras entre os vinte e trinta e cinco anos de idade? São estas as esposas da nova geração, que acompanham os seus maridos em restaurantes, são pedidas em casamento em eventos gastronómicos especiais e tem um paladar e olfato mais apurado que os homens pela experiência que têm na sua própria cozinha, herança das mães e das avós. Elas têm os sentidos mais apurados do que os homens. - Faz-se silêncio e então olho para a Matilde. Finalmente, olhos nos olhos. São castanhos e hipnotizantes.

- Eu gosto mais do vinho do meio. Usá-lo-ia para acompanhar a alheira e a açorda de marisco. O terceiro já tem que ser usado para a posta à Mirandesa porque outro vinho se perderia no sabor da carne. - O Sr. Justino e o Sr. Oliveira estão surpresos, seguramente que nunca imaginaram pedir ajuda a uma senhora sobre assuntos que foram durante séculos governados por homens.

- Temos sommelier. Alheira, Posta a Mirandela e Açorda de Marisco, a menina vai ter que me apresentar esses pratos um dia destes. - Digo enquanto mostro um sorriso à Matilde. Ela sorri de volta, tímida.

E foi desta, o besouro não se contém, levanta-se da mesa assustando todos. E agressivamente agarra o braço da Matilde para a puxar para trás de si. O copo que estava na mão dela bate na mesa e parte espalhando o vinho tinto pela toalha branca. A Matilde cai da cadeira tamanha era a agressividade dele.

- Eu sabia, só podias ter sido tu, o raio do careto. - Diz ele cego de raiva.

Por momentos até pareceu que ia bater na Matilde, mas felizmente vira-se para mim. Ficamos frente a frente, como dois cães prestes a andar à luta.

- Mete-te comigo, baixote! Anda, do que é que estás à espera? Sempre foste um fraco! Vá lá, rouba-me o que é meu à minha frente. Luta por isso. Sê homem! - Ele está totalmente fora de controlo, mas eu tenho que conseguir manter a calma, não tenho que descer ao nível dele. Respira fundo, aguenta, Miguel.

O Sr. Oliveira ainda tenta travar o bode, enquanto o Sr. Justino só pensa em afastar a Matilde de nós. Não posso dizer que é fácil manter a calma, ela empurrou a própria noiva sem remorsos.

- Não luto contigo. – Ouvindo isso, ele levanta o punho para me acertar e eu ainda desvio para que não acerte com força na cara. Consigo que o punho só deslize na cara. Posso até nem lutar, mas não sou pessoa de fugir. Não assim.

- Mas estás louco, rapaz! Vai-te embora, só nos estás a humilhar, sai! - Grita o Sr. Oliveira puxando-o pelo braço e levando-o para fora da sala de provas, acompanhados pelo Sr. Justino.

Mantive-me focado neles enquanto saíam da sala, sério. O Zé Manel esbracejava pelo caminho todo. Não sei o que é que ele pensava em alcançar com o que fez, mas só ele é que saiu mal visto. Se ele achava que ia tomar a melhor comigo, usando a mesma violência que sempre usou enquanto crianças, estava enganado. O mesmo bully de sempre, pobre coitado.

Entretanto outras pessoas, talvez atraídos pelos gritos do Manel, aparecem e perguntam o que se passa.

- Está tudo resolvido, não foi nada. Podem voltar aos vossos lugares. Está tudo bem, obrigado. – Muito contrariados voltam para os lugares de onde vieram.

Respiro fundo e viro-me para trás. A Matilde está branca e completamente imóvel. Suponho que ela nunca o tinha visto assim.

- Sente-se bem, Matilde? Ele magoou?

- Quem devia perguntar isso era eu. - Com as mãos em posição de reza, desfaz-se em pedidos de desculpa dizendo que o Manel não era assim.

- A sério que não sabias que ele poderia bater em alguém? Ainda bem que foi comigo, ainda aguento, mas tu… Cuida-te. - E olho para ela tentando demonstrar preocupação. Ele sempre teve um fraquinho por quem não se podia defender. E a Matilde parece tão frágil.

- Oh, meu deus, a sua cara! - Parece assustada.

Ela passa a mão no meu rosto e sinto um pequeno ardor. Ai, o sacana tinha qualquer coisa na mão que me cortou, e eu não dei conta. Quando passo eu o mão, noto que estou a sangrar.

- M***! - Digo em voz alta sem querer - Desculpa, o palavrão!

Respira e aguenta, Miguel. Ele vai ter o que merece e não sou eu quem o vai fazer pagar. Deixo o Carma atuar! Mais cedo ou mais tarde ele vai dar-se mal com as atitudes dele.

- Venha comigo, eu vou-lhe limpar a ferida.

Eu nem dou luta, deixo que ela me puxe pela mão e sigo-a. A mão dela está quente e a sua pele é suave e delicada. De repente o sentimento de raiva evapora-se e sinto-me bem nas mãos dela. Ela está decidida a cuidar de mim.

Entramos no wc do escritório. Faz-me sentar num banco que estava na esquina do wc e procura a caixa de primeiros socorros. Abre-a e tira para fora o Betadine e o algodão.

- Não uses algodão, usa compressa. - Dito isto, ela olha para mim confusa.

- Qual é o problema do algodão? - Fica ela parada a olhar para mim com o frasco de betadine e o algodão na mão.

- É que fica bocadinhos de algodão na ferida e pode ser pior. - E volta para procurar a compressa.

Fosse qual fosse a gravidade, não me doí, sinto-me bem nos cuidados dela. Fico a admirar a Matilde. As mãos brancas e magras dela tremem enquanto me trata da ferida. A cara dela está a menos de um palmo de distância de mim. Percorro a linha do pescoço com o olhar. A pele é branca, tal como as mãos. Os olhos são grandes e o nariz pequeno mas arrebitado. Os lábios… os lábios são claros e pequenos. Mas o seu sorriso é grande, vi-o ontem.

Fecho os olhos, assim suporto melhor a vontade de a abraçar.

- Então diga-me lá, porque e que não se defendeu? - Pergunta ela de voz doce mas preocupada.

- Ensinaram-me que não devo lutar contra cegos. - Ela pára de fazer o curativo.

- Cegos?! Estamos a falar do Zé Manuel, ele não é cego. Se me dissesse bêbado, eu compreendia. - Afinal, ela não tinha percebido porque é que ele me atacou.

- Ele está temporariamente cego na mente. - Ela fica confusa e pediu-me para explicar o que quero dizer com isso.

- Ele é teu noivo, certo? - E ela consente. - Então, se ele não te fala porque é que está enraivecido, não serei eu a fazê-lo. É ele quem tem que falar contigo. Por favor não me forces a perder o respeito pela vossa relação. - Ela respira fundo e não insiste mais. Ai, que queria tanto desrespeitar a relação deles neste momento, mas tenho que me segurar.

Volto a fechar os olhos e foco apenas na minha respiração, e até assim é difícil, porque sinto o respirar dela e sinto o seu perfume, de tão próximos que estamos. Neste silêncio quase se ouve o meu coração a bater forte.

- Já está. E desculpe mais uma vez. Dou-lhe a certeza que não voltará a acontecer.

Ela guarda a caixa de primeiros socorros e encaminha-me para a sala de provas.

Quando lá chegamos, já estão de volta os nossos parceiros de provas, mas desta vez sem o Manel.

- Como está o Sr. Dr.? Parece magoado. - Perguntam eles.

- O Senhor Doutor não está cá. Miguel está uma maravilha, já levou porradas mais pesadas de meninas. - Suspiram de alívio e tentamos esquecer a situação continuando a prova.

A Matilde pediu permissão para se ausentar explicando que o Sr. Justino já sabia do que se tratava. E despediu-se sem qualquer contacto, nem beijos nem sequer apertos de mão, nota-se que se sentia triste e magoada, e só queria fugir dali.

Sinto pena dela. Ainda a sigo com o olhar até deixar de a ver no corredor, e só então depois, me sento na minha cadeira, onde ela se tinha sentado minutos antes. Tudo isto em silêncio, um silêncio de desconfiança. Os meus companheiros de provas estariam a preparar algum discurso?

- Oh rapaz, ela tem noivo, não te metas com ela. Não destruas a família. - Diz o Sr. Oliveira baixo como se fosse conselho de pai para filho. Noiva não significa casada, e portanto ainda não são uma família. Mas contenho-me e falo com o Sr. Oliveira como filho para pai.

- Sr. Oliveira, com todo o respeito, ela é realmente atraente, bonita e educada, mas viu-me a atirar-me a ela? Fiz com ela o que faria se fosse uma outra pessoa, só pedi uma opinião tal como vocês já tinham dado a vossa. Seguramente a opinião que ela deu sobre os vinhos vos fez pensar numa nova dinâmica de mercado e novo ponto de vista dos vossos próprios vinhos. O que aconteceu com o Zé Manuel já vem muito de trás. Já andamos nisto desde os 5 anos de idade. Ele nunca lidou bem comigo nessa altura, nem lida agora. Vive num mundo de desconfianças e perseguições imaginárias. Eu acabo de cá chegar, acham que quero criar infelicidades à minha volta? Saí de França porque quero viver a minha vida em Paz. Mas, o que mais me incomoda - faço uma pausa propositada, pois o que quero dizer a seguir é o mais importante para ela - é que ele teve um tipo de reação que não se tolera a ninguém. Temo pela pobre rapariga. Se ele se virou desta forma a mim, o que fará com a mulher dele no futuro? - Tentei ser convincente, com tantas justificações espero que eles não se virem para o meu lado.

Depois de uns momentos de silêncio, o Sr. Justino olha para o Sr. Oliveira e este comenta:

- O rapaz tem razão, o Zé sempre foi um menino da mamã arrogante. E eu arriscava a contar ao pai dele o que aconteceu aqui. Isto foi longe demais. Isto vai piorar… e a sua funcionária que é a mulher dele, é a que vai sofrer as consequências. - O Sr. Oliveira tentou convencer o Sr. Justino que o Manel havia deixado de ser de confiança com o comportamento dele de há momentos.

Peço para não fazermos mais provas nessa tarde, visto que tenho betadine junto ao lábio colocado pela Matilde. Todos nós sabemos que não é a única razão, mas é justificação suficiente.

Para quebrar o ambiente pesado que ficou, faço algumas perguntas sobre a região e sobre Portugal. Quero ter uma noção de como é que tem evoluído a tecnologia em Portugal, a sociedade e o empreendedorismo. O Sr. Justino já fala mais, tem estilo de político ou de comercial que eu terei que ser para vingar nestes negócios nos próximos anos. Fala do seu país com grande orgulho, discurso que eu terei que aprender. Afinal a diferença entre comercial e político não é assim tão grande.

No final da tarde despedimo-nos para cada um seguir a sua vida. Antes de seguir para o carro, páro numa cafetaria para tomar um café, uma água e um pastel. Mais exatamente uma nata. As saudades que tinha dos pastéis portugueses. Recordo-me de tantas vezes que os meus pais chegavam a casa após visita a Portugal e eu roubava às escondidas os pastéis deixados no armário. Os meus pais sabiam exatamente o que eu mais gosto.

Recordo-me do dia que lhes pedi desculpa por roubar os pastéis do armário, sentia-me culpado por lhes mentir e roubar. "Querido, todos eles eram trazidos de propósito para ti, sempre soubemos que os ias buscar." Acho que no fundo eles sempre souberam que eu não pertencia a França e sempre fizeram o seu possível para de dar um pouco de Portugal.

Faz-me bem este tempo em silêncio, sozinho junto à janela da cafetaria a ver as pessoas passarem na rua. Não é tão movimentado como em Bordeaux. Lá as gentes até pareciam baratas tontas, sempre debaixo de grande stress.

Antes de sair ainda espreito no espelho o resultado do encontro com a besta. O sacana tinha pegado num pedaço do copo partido, a intenção era de doer mesmo. Até posso considerar que tive sorte, não reparei que pegou no vidro e só me deixou uma marca.

Recordo-me das minhas próprias palavras: Se ele se virou desta forma a mim, o que fará com a mulher dele no futuro?

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