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  • Foto do escritorSusana Cruz

Carnaval Genuíno - II - Na Tasca Central

II


Descendo a vila, os colegas quiseram parar na Tasca Central.

- Tenho sede! Queremos cerveja. – Sede?! Desde quando é que a cerveja é que apaga a sede?! Que seja, peço uma também para mim.

- Amanhã pago. - Digo eu ao Sr. Celestino, o dono da tasca.

- Vê-se logo que tu és novo por cá, garoto. Até ao enterro do entrudo és careto cá da vila. Não pagas nada! Aproveita Miguel. - Diz o Sr. Celestino Barreto.

O grupinho dispersa-se pelas várias mesas socializando com quem lá está. Já sem as máscaras, metem conversa com toda a gente. O Carlos puxa-me pelo braço para a mesa dele.

- Conta-nos lá, Franciú, como foram estes anos na França? As francesas são como se conta por aí? - A atenção de todos na mesa vira-se para mim. Gaguejo um pouco. Falar das francesas não é um tema que me deixe assim à vontade. E é uma sensação estranha voltar a falar com pessoas que já não via há mais de uma dezena de anos. Já nem sei como falar com eles, amigos de infância e adultos a quem devemos respeito. Estamos todos tão diferentes, eu já sou mais alto do que quase todos eles. Quando saí da vila era conhecido como o “baixote”.

- Tem corrido bem. As francesas são um pouco sisudas. Gosto mais das portuguesas. São mais genuínas, de sorriso fácil. - Nesse momento lembro-me da rapariga que estava na minha varanda, do seu sorriso e dos seus olhos brilhantes. O meu pensamento é interrompido pelo grito do Carlos.

- Alto lá, que o nosso baixote já está de amores por uma portuguesa! Assim é que é! Orgulho do produto nacional! Vamos celebrar, um brinde ao Miguel! Um brinde ao regresso do Baixote à sua terra! Um brinde ao nosso mais recente careto!

Todos se levantam de copo na mão, bem alto no ar. E até o Sr. Celestino pára para brindar connosco. De facto, o orgulho apodera-se de mim. Não estou nada arrependido de cá voltar, mesmo sabendo que deixei tudo para trás, trabalho, namorada e amigos na França.

Acalmados os ânimos, está na altura de saber quem era aquela rapariga, então meto conversa com o Sr. Celestino.

- Olá Sr. Celestino, sabe quem está a fazer limpezas na casa dos meus pais?

- Oh, rapaz, senhor não! Trata-me por Celestino! - Insiste com um grande sorriso. – Sei, sim senhor. Até fui eu quem recomendou a dona aos teus pais. - Respiro de alívio, parece que saber o nome dela até vai ser fácil.

- Ela veio para a vila justamente quando vocês se foram embora. Dona Isaura, boa senhora. Viúva mas chegou pobre à vila, com pouquíssimo na mala, coitadinha. - Diz o Sr. Celestino com suspiro de pena.

Rapidamente se ouve do meio da multidão:

- Ai, Celestino, se a tua mulher sabe que andas a falar da Dona Isaura! - O Sr. Celestino ainda barafusta, mas ninguém o ouve com o som estridente das risadas do grupo.

Quanto a mim, fico encravado com a palavra “dona” e "contratada há 16 anos atrás”?!

- Celestino, que idade terá a “Dona”? - Saliento a palavra, para ter a certeza que era mesmo isso que ele tinha dito.

- Sei lá, rapaz. Uns 45, 47 anos, porquê?

- Só para ter uma noção, ainda não a conheci pessoalmente.

Outros temas foram se metendo nas conversas, o Zé Carlos namora uma rapariga de uma aldeia vizinha embora as coisas entre eles não estão a correr assim tão bem. O Sr. Pereira ainda é Presidente da Junta de Freguesia e o seu filho mais velho já lhe segue as pisadas. A Dona Júlia e o seu marido faleceram e deixaram a sua casa abandonada porque os filhos não queriam deixar os seus empregos seguros na Suíça. O Sr. Castro e Silva e sua esposa também faleceram, mas no caso destes os filhos não se entendem quanto as heranças e ficou outra casa abandonada.

No meio de todas estas conversas alguns caretos já terminaram a segunda cerveja.

- Carlos, como vai ser o nosso programa depois disto?- Pergunto ao meu amigo, mas quem responde é o Sr. Celestino.

- Oh Miguel, hoje é o Domingo Gordo! Dia de Jantarada com a Família.- Diz ele massageando a barriga e dando uma grande gargalhada.

- Celestino, hoje não sou o Miguel, sou um Careto de Podence, posso jantar com a família que eu quiser?

O Sr. Celestino leva a mão à cabeça atrapalhado.

- É verdade rapaz, a tua família só chega na terça-feira. Desculpa lá. - Parece arrependido pelo que havia dito uns momentos antes.

- Já sei, és meu convidado, jantas connosco, em minha casa. - ainda abro a boca para recusar, mas ele não deixa.

Assim continuamos as conversas sem fim, piadas e discussões sobre clubes de futebol nacionais. Escusado será de dizer que sendo clubes portugueses eu não estou a par de nada.

Estou imensamente orgulhoso em fazer parte deste grupo de caretos. Fui muito bem acolhido por todos.

Despeço-me do grupo para mudar de roupa e tomar um duche, estou exausto.

- Vai, vai, que esse fato cheira bem a mofo, e põem-no na varanda a tomar ar! - Diz o Carlos. Confirmo com a cabeça, é bem verdade, com o entusiasmo todo que passava nem senti o cheiro quando o vesti.

Coloco a máscara e subo a rua a pensar nas conversas que tive com o Zé Carlos nas longas horas ao telefone e no skype.

Ano após ano, o Carlos tentava convencer-me a voltar à vila para me juntar ao grupo. E eu sempre adiando, não sei se por medo de voltar ou medo de perder o que construí em Bordeaux.

- É só por três dias, porra. É um fim-de-semana prolongado. Vem, que não te arrependes! - Dizia o Carlos enquanto esbracejava do outro lado do skype.

Mas eu já sabia que se voltasse à vila, podia não ser apenas por três dias. Podia ser uma mudança radical de vida para qual ainda não estava preparado.

A minha vida em Bordeaux entrou nestes 2 últimos anos numa rotina. Monotonia melhor dizendo. Não é que o mundo dos vinhos não fosse fascinante, até é, mas faltava-me algo mais. O dia-a-dia guiando os turistas e sommeliers pelas adegas do nosso grupo, estava a desgastar-me aos poucos. Os amigos, esses, sempre me viram como um forasteiro, nunca verdadeiramente como elemento do grupo deles. Chamavam-me “paysan”, rapaz do campo. Mas a verdadeira razão do meu abandono da vida em Bordeaux foi a traição da minha namorada com o meu melhor amigo. Uma amizade de 10 anos e um namoro de 4 que se desfizeram-se em deceção total, da qual tento esquecer. Por isso deixei tudo para trás e decidi voltar a Podence. Trago comigo a experiência profissional que adquiri nestes anos e um novo projeto para a vila. Antes de me despedir de França, a minha mãe disse-me “A quem muda, Deus ajuda”. E estou prestes a saber se ela tem razão.

Ruas estreitas, vasos à porta, varandas de madeira. Paredes e telhados em xisto e ruas calcetadas de forma irregular. Sinto-me em casa. O ar puro que não existe na cidade, e as ruas ainda vazias de gente que cheiram a segurança. Pode até ser um pequeno momento de euforia, mas, de facto, lembro-me. Adorava a vila antes de ir para Bordeaux. Lembro-me que saí com a minha família revoltado pela decisão deles. Obrigaram-me a despedir dos meus amigos e primos sem uma certeza de regresso. Deixava os professores e os colegas para trás, sem nunca me perguntar, sequer, a minha opinião. E agora, de volta, penso que talvez tenha sido essa a razão de nunca mais cá ter voltado, nem para férias de verão. Tinha medo de ser forçado a voltar a Bordeaux, e a reviver a mágoa de criança.

Lembro-me do Sr. Celestino, embora com menos rugas. O Sr. Castro e Silva com o seu grande bigode que se mexia de forma engraçada e era a alegria da criançada. Grandes memórias que vão voltando a pouco e pouco enquanto vou subindo a rua. Que saudades.

Chego a casa, abro a garagem e vejo a bicicleta que usava para ir brincar com as crianças das aldeias vizinhas. Está agora tão pequena e tão cheia de ferrugem, podia ser que um dia a arranjasse e, quem sabe, ficasse para o meu filho. Aqui faz-se assim, ao invés de deitar fora, arranja-se e fica para os primos ou para os filhos. Tal qual se fez com o fato de careto, que já foi usado pelo meu pai e que agora é usado por mim.

Subo as escadas e entro em casa, a sala cheira a lavado, recordo-me da rapariga da varanda. Estendia a colcha da minha cama. Solto uma gargalhada quando penso no que o Sr. Celestino disse. Ela não podia ter quarenta e cinco anos, seria da minha idade ou mais nova. Entro no quarto e vejo a colcha na cama, estendida a combinar com as almofadas. O quarto parecia intacto desde que eu havia saído há dezasseis anos atrás. Estava tudo igual dentro de casa.

Tiro o fato. Primeiro a máscara feita pelo meu avô, de couro com fundo vermelho e imitando o bigodão com barba. As dos outros só tinham uma cruz na zona da testa, esta tem também duas riscas em cada lado da cara. Quando o meu pai a usava, tinha eu nove anos, ele parecia-me um valente guerreiro. Era o meu herói, hoje sou homem como ele já foi. Mais uma vez encho o peito de orgulho vejo o meu pai no espelho do quarto, sou tão parecido com ele.

Cintos com chocalhos, casaco e calças de colchas e franjas de lã vermelha, verde e amarela, carapuço e rabo também com franjas, tudo das mesmas cores. Pouco a pouco vou me sentindo mais leve.

Tantas vezes vi o meu pai a vestir-se, que quando cá cheguei, até me vesti sozinho sem precisar de ajuda.

O meu pai contava que os caretos eram seres diabólicos, que abordavam as meninas solteiras e as desencaminhavam, provocando-as para o pecado. Mas prefiro pensar que celebram a entrada da primavera. Trazem alegria e animação aos habitantes da vila e passando a ser admirados por isso. São três dias de folia, o adeus ao tempo de escassez de alimentos para celebrar o início das novas sementeiras. Esta história passa de geração em geração, entre as gentes da aldeia. Nos telefonemas do Carlos, ele repetiu vezes sem conta o que o meu pai já me tinha contado. Achava que pela repetição da história me convencia a voltar.

Parece que ambos tinham razão. Assim que colocamos as vestes e a máscara somos apoderados por uma sensação de liberdade, tomamos a pele de diabinho, malandro e rebelde. Até os habitantes de Podence esperam ansiosamente pelos caretos, abrindo as portas das suas casas para deixar entrar a alegria e energia do careto.

Depois do duche e de abrir finalmente as malas, arranjo-me para o jantar com a família do Sr. Celestino, decido colocar o fato de careto no quarto dos meus pais para não apanhar o orvalho da varanda.

É preciso agasalho, a noite caiu e o frio gela. E volto a seguir rua abaixo em direção da tasca. Ainda olho para trás, na esperança de voltar a ver as janelas da varanda abertas e a rapariga que estende a colcha. Quarenta e cinco anos, será que foi imaginação minha?


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