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  • Foto do escritorSusana Cruz

Carnaval Genuíno III - Domingo Gordo

Caretos de Podence - Domingo Gordo - Carnaval Genuíno

Ainda chego a tempo de ajudar o Sr. Celestino a fechar a loja. Depois subimos juntos para a sua casa. Na cozinha está a sua esposa, baixinha de cabelo já bastante grisalho e as suas duas filhas, já meninas bem grandes, mais altas do que a mãe. É uma família meiga e humilde. Na sala de estar está a família Pereira, o Sr. Presidente da Junta, senhor bem apresentado, um pouco calvo nos seus 55 anos, com a esposa, elegante na roupa e no físico, e os seus dois filhos, Zé Manuel, conhecido como o herdeiro da Junta, sempre emperuado e senhor do seu mundo, e o meu melhor amigo, o Zé Carlos.

- Que saudades. Que bom ver-te novamente. Passaram-se anos que não vinhas cá. As coisas na França correram assim tão mal que quisesses voltar? - Diz o Zé Manuel inconveniente como sempre.

- O que aconteceu na França fica na França! - Respondi-lhe na cara libertando um sorriso largo e orgulhoso, e depois virei-me para os outros.

- Sabe bem, estar de volta, a vilã não perdeu o encanto. – Continuo. Nunca tinha gostado do Manuel e vejo que estes anos não mudaram nada na sua forma de ser.

- Celestino, ajudas-me aqui com o frasco? - Ouve-se da cozinha.

- Deixe estar, Sr. Celestino. Descanse aí no sofá que eu ajudo a sua esposa. - O Sr. Celestino agradece senta-se no sofá, tal qual eu tinha pedido.

Entro na cozinha e ajudo a esposa do Sr. Celestino, não só com a abertura do frasco, mas também a levar as panelas para a sala. Nisto, aparece o Carlos e dá-me uma palmada nas costas e diz-me entre gargalhadas:

- Ele não está habituado a que lhe respondam da mesma moeda! Eh pah, tão simples e tão direto, sou teu fã. - Riu-me com ele. É verdade, soube bem deixá-lo pendurado nas insinuações dele e sair a rir.

O Carlos calou-se de repente, justamente aquando da entrada das filhas do Sr. Celestino, a Inês e a Leonor. Estão bem bonitas mas, para o Sr. Zé Carlos ficar assim em silêncio, tinha que ser algo mais. Elas saíram e ele ficou a olhar para a porta.

- Coraste, qual delas, pinga-amor? - Digo eu entre risos.

Manda-me calar e foge logo para a sala para se sentar à mesa. Ele tem que ter cuidado, já namora uma moça de uma vila vizinha, não devia meter-se com segunda. Mais tarde eu falo com ele.

Durante o jantar conversamos bastante. É realmente uma família animada, e vendo desta perspetiva, o Sr. Pereira e a Sra. Pereira são boas pessoas e muito acessíveis. Em criança cheguei a imaginar que o Carlos era adotado, tamanha era a diferença e feitio entre os irmãos. Afinal, o Manuel é que é o extraterrestre da família.

O Zé Manuel mantém-se calado e de testa franzida como se estivesse chateado com o mundo. Ou melhor, comigo, porque é de mim que não tira os olhos. É nesta altura que compreendo a expressão do meu pai “aí, se o olhar matasse”. Aquele ainda não mata mas ía jurar que lança chamas de tão vermelhos que os olhos estão. De vez em quando olho para o Manuel, e, só para o provocar, forço um sorriso de satisfação. Nem preciso de falar, o peito dele enche, inspirando gás suficiente para explodir com o distrito.

Quando termina o jantar as senhoras mudam-se para a cozinha, e os homens para o sofá. Ainda me ofereço para as ajudar com a loiça, mas elas não me permitem. Insistem que me sente com os homens na sala. E lá vou eu assistir aos assuntos de política e futebol. Sento-me com os restantes homens à volta do cinzeiro, mas afastado do cheiro do tabaco, esse cheiro que sempre me incomodou. Entre as várias conversas regressa-se ao tema dos caretos.

- Oh irmão, por falar em caretos, soube que um dos teus amiguinhos do grupo teve a lata de se meter com a minha noiva. Eu já não tinha dito para não se meterem com ela? - diz o Manuel, arrogante, como sempre.

- Não sei do que estás a falar. - Responde o Carlos. - Andamos a passear pela vila toda, fazendo brincadeiras com o mesmo respeito de sempre, não sei o que queres dizer com “meteram-se”.

- Eu vou saber exatamente o que aconteceu, e quando souber, vou conversar com esse fulano. - Diz o Zé Manuel olhando para mim em tom ameaçador.

Será que a tal noiva do Manuel era a rapariga em minha casa? Acho que não fiz nada de mal. Deixo-me estar em silêncio, de nada valeria falar. Pode até nem ter sido a noiva dele. E se for, a tempestade virá ter comigo a seu tempo se assim tiver que ser, será. E se for quer dizer que não era imaginação minha, ela existe mesmo. Fecho os olhos e respiro fundo tentando rever na memória a rapariga a segurar a flor na mão.

Terminado o jantar peço ao Carlos para me acompanhar numa pequena caminhada pela vila e juntos vamos caminhando sem um rumo específico mas com muito para conversar.

Era a primeira vez em que estávamos a sós desde que eu chegara. Falamos sobre um pouco de tudo, rindo, relembrando as pessoas da vila, e claro, da emoção de ser careto, contagiante.

- Por falar em namorada, tu ficaste vermelho quando apareceram as irmãs Barreto ao nosso lado. Há pouco na cozinha, lembraste? - Ele senta-se no banco da casa ao lado da minha e fica uns momentos em silêncio.

- Mais tarde ou mais cedo tinha que se saber, amigo. O meu namoro com a Liliana não vai assim tão bem. Há já uns meses que nos fartamos de discutir. - Disse em tom sério olhando para o chão.

- Não posso receber mensagens que faz-me interrogatório completo. Ainda um dia destes refilou comigo por ficar demasiado tempo a falar contigo no Skype. Lembras-te daquela vez que ela apareceu na câmara? Foi para confirmar com quem é que eu estava a falar. Estou a ficar farto dos ciúmes dela. É a toda a hora. No início até achava piada, agora não posso com eles…

- Foi por isso que te começaste a interessar pelas irmãs? - Ele mantém-se em silêncio por momentos.

- Não! Já gostava dela antes de começar a namorar com a Liliana.

- O que é que te impediu? A idade? - Ele olha-me de lado e franze o sobre olho.

- O pai dela. - Responde. Solto uma gargalhada descontrolada.

- Só podes estar a gozar, o pai dela? Aquele homem tão fixe? Impediu-te? Quando e como?

- Não gozes, quando ela fez 16 anos houve um rapaz que foi ter com ele para pedir a Inês em namoro, o Sr. Celestino correu atrás dele com a caçadeira. - Ficamos uns momentos de silêncio, o caso parecia ser sério, agora compreendo porque é que o Carlos ficou com medo.

- E tu viste isso?

- Não, contaram-me.

- Amigo. A Inês... é da Inês que estamos a falar, certo? - Ele consentiu com a cabeça - A Inês na altura tinha 16 anos, entretanto já fez 19, se calhar ele não queria que nenhum abusador se aproximasse dela antes dos 18 anos. Sabes como são os miúdos de hoje, só querem divertimento de uma noite e fogem.

- Está bem, mas, caçadeira? Nem eu sabia que o Sr. Celestino tinha caçadeira. - Ele parecia realmente perturbado, tentei amansar a cena.

- Quem sabe se o rapaz tinha já fama e se a caçadeira não estava carregada! Ele não queria o coração da filha partido. O pai da minha ex disse-me uma vez "partes o coração da minha filha, parto-te as pernas". - De repente o Carlos endireita-se no banco e olha-me de lado, ui, vai sair asneira dali.

- Então foi por isso que vieste para Portugal, usar as pernas para fugir enquanto podes. - Rimo-nos os dois.

Aproveito o facto de estarmos sós e contei o que aconteceu na varanda da casa dos meus pais. Aí o Carlos mudou de expressão.

- Oh pah, não vás por aí. Deixa a moça. Deves ter outras à tua volta para escolher, esquece-a. Amanhã queres vir conhecer as amigas da minha namorada? - O Carlos parece esperançado que eu a esqueça.

- Carlos, tento esquecê-la como tu te esqueceste da Inês?

Depois de uns momentos a olhar para um para o outro, conclui o Zé Carlos. - Miguel, sabes que mais? Estamos f***s.


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