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  • Foto do escritorSusana Cruz

Carnaval Genuíno IV - Segunda de Carnaval

É segunda-feira de Carnaval e não posso vestir-me de careto, tenho duas visitas agendadas a diferentes cooperativas. Pela manhã vou a Mirandela, e pela tarde vou a Macedo de Cavaleiros.

A visita da manhã correu como o previsto, sem surpresas. As provas eram o que eu já esperava, os vinhos são agradáveis e o Sr. Monteiro era um franco conhecedor de vinhos da sua cooperativa, mas ainda teremos muito para ajustar nas próximas reuniões. Foi apenas a primeira abordagem aos vinhos de Trás-os-Montes.

À tarde sigo para Macedo de Cavaleiros. Espera-me o Sr. Justino Cabral, que me recebe à porta e leva-me até à sala de provas, onde já nos esperam 2 senhores, um deles o meu já bem conhecido, o Zé Manel. Respirei fundo e deixei que o Sr. Justino nos apresentasse.

- Senhores, este é o jovem Sr. Miguel Matos, enólogo, estudou na França, e trabalhou em várias adegas em Bordéus. Tem em mente um projeto de comercialização de vinhos de Trás-os-Montes para o estrangeiro. Este é o Sr. Oliveira, sócio representante da cooperativa, detém uma das maiores vinhas da região. E este jovem aqui é o Sr. Pereira, filho do Sr. Presidente da Junta da União de freguesias de Podence e de Santa Combinha que pediu para assistir às provas. - Diz o Sr. Justino muito profissional.

- Muito gosto em conhecê-lo Sr. Oliveira. A sua presença é muito bem-vinda, espero que não me leve a mal se lhe fizer algumas perguntas sobre o vinho que me apresentam. Sendo alguém que trabalha face-a-face com a vinha seguramente vai ser fundamental para a melhor compreensão dos vinhos que me apresentam. - Aperto a mão do Sr. Oliveira satisfeito de me terem trazido alguém que viva o seu dia-a-dia na vinha, pois, eu tenho já muitas questões a colocar, algumas delas já pensava desde a prova da manhã.

- E o Sr. Pereira, bem-vindo, seja lá para o que veio fazer, com certeza que vamos aprender muito em simultâneo. - Ainda lanço a mão para um aperto. Escusado será dizer que ele não o aceita e os seus olhos ainda me lançam mais chamas do que no dia anterior. Aparentemente, a noite não amansou a fera.

Na mesa há, não só vinhos, mas também queijos, pães doces e salgadinhos. Peço que retirem da mesa tudo o que não fosse produtos da cooperativa, assim ficam apenas os vinhos tranquilos, alguns queijos e compotas.

Aproveito a presença de um dos produtores e quero saber o máximo de informação sobre os vinhos que ele produz. Fala-me da região, das castas, da forma de produção, do clima, das possíveis doenças das videiras, dos desafios, dos anos bons de produção, dos melhores produtos da região.

Vê-se nele o orgulho de sua produção, exatamente o que não havia em Bordeaux. Um chefe de equipa que facilmente calçaria umas galochas, pegaria na tesoura de poda e vestia o casaco para trabalhar debaixo de chuva. As suas mãos são ásperas, corpo pequeno, braços ágeis e fortes, é homem para conduzir o trator e pegar nos cestos de uvas. Conhece o sabor de cada casta, conhece o crescimento de cada videira. Era disto que eu sentia falta em Bordeaux, homens da terra, guerreiros no vinho e líderes presentes. Sinto-me satisfeito com a decisão que tomei. Representar estes bravos do campo onde a dedicação e trabalho é resultado do seu próprio suor. Só escutando o Sr. Oliveira já sinto que a prova de vinhos da tarde vai ser de grande qualidade. Já havia passado 1 hora só de conversa e a mesa, preparada, esperava por nós. Chegara o momento para provar o néctar dos Deuses. Mas ainda tenho dois pedidos a colocar:

- Reparei no caminho para cá que há bastantes oliveiras, com certeza que têm azeite para dar a provar e pode ser mais um produto para apresentar ao cliente.

- Claro, claro, isso era ótimo. – Diz o Sr. Oliveira visivelmente entusiasmado. - Também temos amêndoas e compotas de vários frutos, também será útil?

- Claro, as compotas já as temos na mesa. Ainda bem que tem produtos variados, não me parecem em quantidade e variedade suficiente para aumentar o mercado ou cativar novos consumidores, mas vão ser seguramente bónus para os compradores internacionais.

- A segunda coisa: Podem servir as garrafas fechadas e eu abro na mesa? - Por esta é que ninguém esperava.

- Desconfias de nós? - Mais uma vez em grande, Manel. Respiro fundo, gosto de desafios e o Manuel tornou-se no desafio do momento.

- Os clientes vão ser servidos nos restaurantes dessa mesma forma, abrindo a garrafa à mesa justamente em frente ao cliente. Por outro, gosto de ouvir o saltar da rolha, ajuda a compreender a qualidade de preservação do vinho. - O Sr. Oliveira e o Sr. Justino compreenderam a situação, no entanto, o Manuel ainda ficou mais aborrecido, só lhe faltou virar costas e espernear no chão para ser uma birra completa.

- Eu vou pedir à Matilde para trazer as garrafas fechadas, se me dão licença. - Diz o Sr. Justino.

Enquanto aguardamos pelas garrafas faço mais umas questões sobre o marketing usado até então. Dou algumas sugestões e ainda me ofereço para fazer uma tabela de apoio sobre cada vinho a comercializar, tabela essa que até os próprios produtores poderiam usar na divulgação dos seus vinhos nos mercados diretos. O Sr. Oliveira parece ter gostar da ideia. O Zé Manel ainda parecia uma estátua de cobre a passar pelas chamas, imóvel, ficando cada vez mais vermelho, pouco a pouco, tal e qual o tórrido Verão duriense que o Sr. Oliveira me falava há pouco.

- Estamos prontos. Tem mais alguma questão que nos queira colocar antes da prova, Sr. Matos? - Pergunta o Sr. Justino enquanto centraliza a cuspideira.

- Para já, não tenho mais questões. Obrigado por perguntar.

O Sr. Justino fez um sinal com as mãos para alguém atrás de mim. Não sei se vai assistir à prova. As 4 cadeiras estão já ocupadas, talvez venha só trazer os vinhos que faltam.

- Matilde, este é o Sr. Miguel Matos. Miguel, esta é a Matilde. Vai ficar para tirar as notas necessárias.

Viro-me para cumprimentar e surpreendo-me ao ver a rapariga da varanda! Ela agarra a mão que eu já tinha lançado para cumprimentar e aperta-a. Deu choque e estremeci. M***, é a empregada da casa dos meus pais!

- Olá, hum… muito gosto. Eu, hum… se me dão licença, vou ao toilete, hum… wc… hum, lavar as mãos antes de… hum… abrir as garrafas. Com licença. Eu … abro as garrafas. Podem deixar estar assim. Eu… já venho. É rápido. - Gaguejo como nunca. E parece que nem sei falar português. Ao caminhar em direção do wc ainda olho para trás só para confirmar se era a tal rapariga ou se terá sido uma alucinação.

Certo! É verdade. É ela. Sem dúvida.

Quem diria que a iria encontrar aqui, como se chama, mesmo? Eles disseram Matilde. Hum, agora compreendo a presença do Lambidinho por cá, está a marcar território, ela só pode ser a namorada. Não, a noiva dele. É oficial, vou ter problemas. Estou no meio do enredo. E se se deu ao trabalho de vir até aqui… já não tenho por onde fugir. Onde me meti! Raio do careto tinha que fazer cortesia à donzela da varanda!

Mas fica-lhe tão bem aquele cabelo solto, liso, acastanhado escuro, pousado sobre os ombros. Pára! Passo água fria na cara e olho para o espelho.

- Acorda para o trabalho! Tens que ser profissional. - Começo a falar com o espelho como se ele me levasse o juízo à cabeça. - Vais para a mesa e vais-te comportar como um cavalheiro! Não, quero dizer profissional, vais-te comportar como profissional! Estás porreiro, estás! À frente da víbora vais olhar para a princesa com esses olhos, vai dar asneira! Que se lixe, já que não posso fugir da confusão então mais vale ir já “enfrentar o touro pelos cornos”. Acho que era isto que o meu pai me dizia. E pode ser que não dê nada. Afinal ela está noiva que é como se fosse casada. E eu não me vou meter com uma moça casada. Tenho respeito! Em frente! - Respiro fundo e volto para a mesa de provas.

Estão todos de pé, os dois senhores, o texugo e a princesa.

- Não, por favor, sentem-se nos vossos lugares. Eu fico de pé para vos servir. - Os homens sentam-se mas a Matilde continua de pé, não tem cadeira, a única que está livre é a minha.

- Porque está de pé, menina? Sente-se na minha cadeira. - E empurro a cadeira para o alcance da Matilde. O Sr. Justino ainda comenta que não valeria a pena ela se sentar porque é só, e saliento, só uma funcionária do escritório e está ali para tirar apontamentos necessários.

- A mim dá-me jeito ficar em pé para vos servir os vinhos e um cavalheiro não deixa a senhora em pé. Se há cadeira, que se sente. - Ela ainda olhou para o Sr. Justino como que a pedir autorização e este faz um gesto para que ela se sente. O Manuel, por sua vez estava quase a arrebentar, afinal de contas eu estou a ser cavalheiro com a sua noiva, e estou a tomar-lhe o gosto!

Abro a primeira garrafa, está tudo em silêncio, pode-se de facto ouvir o som da rolha a saltar, olho para a rolha, cheiro a rolha e pouso-a na mesa num pequeno prato. Pego no meu copo, sirvo e agito o vinho, sinto o odor que se solta ao mexer o copo e sirvo mais quatro copos ficando à minha frente 5 copos de vinhos.

- Oh senhor doutor, está a fazer mal as contas. Somos quatro a provar e não cinco. - Ladrou o Manuel.

Depois de colocar o primeiro copo à frente do Sr. Justino, o segundo à frente do Sr. Oliveira, de seguida o terceiro à frente da Matilde posiciono o quarto copo próximo a mim. E agarro o quinto copo levanto no ar e digo:

- O quinto copo de vinho é para si, ou acha que eu ia deixar o filho do Sr. Presidente da Junta de fora da prova? - Os outros riram em surdina.

- Qualquer funcionário que trabalha numa casa de produtos, neste caso vinhos, deve ter uma mínima noção sobre o produto que representa, não faz mal nenhum aos funcionários provarem com os patrões. – Sem olhar para a Matilde esboço um sorriso na direção do Sr. Justino que me retribui.

À medida que eu ia cheirando e provando aos poucos em silêncio, os outros iam fazendo o mesmo.

O Sr. Oliveira é o que percebe melhor de provas de vinho, nota-se na habilidade de pegar no copo e agitar o vinho. O Manuel pelo contrário, nem esforço faz. Pega no copo como se de cerveja se tratasse e bebe de uma só vez. Já imagino qual vai ser o resultado disto. Ciúmes e álcool nunca foram bons parceiros.

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